Quando deixamos de entender as pessoas

Resenha do livro “Quando deixamos de entender o mundo”, de Benjamín Labatut, Ed. Todavia

Um professor que falava sobre anãs brancas, gigantes vermelhas e buracos negros me acendeu o desejo por estudar as estrelas. Outro professor me sugeriu como caminho a graduação em Física, que me garantiria mas opções no mercado de trabalho que a Astronomia, e me daria linguagem para estudar astrofísica estelar na pós-graduação. À época, também me interessava descobrir se a natureza, pela Física e pela Cosmologia, me daria alguma pista da existência daquele Deus em que eu já não acreditava, ou de uma unidade fundamental, a grande Verdade. Sentia que, havendo uma razão ou uma ordem estruturante das leis universais, eu a encontraria nas entrelinhas daquilo que me parecia uma linguagem que deveria preceder a existência do Cosmos.

No segundo mês da minha graduação em Física, mais pelas discussões com colegas de outros cursos do que pelos debates dentro da carreira que escolhi, entendi ser impossível acessar uma realidade objetiva por qualquer tipo de linguagem, inclusive a que eu estudava. Comecei inclusive a discriminar uma linha filosófica seguida por muitos professores do meu curso, que defendia a Matemática como linguagem universal. Não foram poucas as vezes em que ouvi sobre a expectativa de, havendo vida inteligente além da terrestre, a comunicação entre nós e esses seres seria inevitavelmente pela Matemática — ideia presente em “Contato”, ficção de Carl Sagan, e em outras obras de divulgação científica.

Esse tipo de busca pessoal por uma linguagem universal, que por muito tempo compartilhei com outras pessoas envolvidas com Ciências da Natureza, é muito comum entre quem têm alguma afinidade com o pensamento científico. Ao ler “Quando deixamos de entender o mundo”, de Benjamín Labatut, me reencontrei com essas pessoas. Foi um encontro muito feliz, por mais que a narrativa traga em alguns trechos as angústias que se desdobram dessa busca. Não apenas um reencontro, mas uma aproximação inesperada com personalidades que em meu imaginário eram ostentadas como gênios com os quais eu nunca me igualaria. A surpresa foi enfim poder me colocar no lugar deles, não pela afinidade com seu trabalho, muito menos por sua incrível capacidade de abstração, mas pela humanidade inerente à sua produção intelectual.

“Quando deixamos de entender o mundo” é uma obra que mistura elementos reais da vida de cientistas e matemáticos com nomes consagrados no meio científico. Ao apresentar a relação de personalidades como Frtiz Haber, Karl Schwarzchild, Shinichi Mochizuki, Alexander Grothendieck, Louis De Broglie, Werner Heisenberg, Niels Bohr e Erwin Schroedinger com seus objetos de pesquisa, o autor consegue oferecer uma ideia de como o lado humano não se separa da genialidade de todos eles.
Labatut explorou com brilhantismo a liberdade de mesclar não ficção com ficção, o que torna difícil atribuir um gênero à sua obra. Considerando a formação latinoamericana de Labatut, que vive em Santiago do Chile desde seus quatorze anos, é inevitável traçarmos um paralelo entre a mistura entre esses dois tipos de narrativas que caracteriza seu livro e a obra de Jorge Luis Borges. Como exemplo, temos a epígrafe do capítulo que tem o mesmo título do livro; o autor usa um trecho de uma carta de Heisenberg a Wolfgang Pauli – elemento não-ficcional – e depois narra o próprio Heisenberg em uma taverna tomando um líquido alucinógeno, algo como uma beberagem com efeitos como o da ayahuasca. A bebida provoca a visão de luzes hipnóticas e inexplicáveis, de uma multidão e de uma criança morta em um bosque; não há evidências de que o cientista tenha passado por essa experiência.

Entendo que não vale a pena colocar em questão se o uso de elementos ficcionais misturados com não ficcionais na mesma narrativa dá mais ou menos valor à obra, ou se é intenção de Labatut enganar quem lê. Vale, sim, explorar o que tal recurso nos oferece. Se há ficção, seu valor passa a ser justamente o de nos conectar com o que há de mais humano em suas personagens e o que nos afeta como pessoas e agentes sociais: sendo a narrativa verossímil, teríamos feito como elas na realidade apresentada nas páginas desse livro? Do ponto de vista de Luiz Antônio de Assis Brasil, ser ficcionista é exercer nossa humanidade. Nesse sentido, Benjamín Labatut, exercendo a sua, conferiu humanidade a grandes cientistas que costumam ser encarados como representantes de uma esterilidade que o senso comum atribui às Ciências da Natureza e à Matemática, que até pouco tempo eram referidas como Exatas. Ao longo do livro, fala-se como Albert Einstein, a quem o senso comum infelizmente atribui uma intelectualidade que o coloca acima de todas as outras pessoas, ou até próxima de uma pretensa perfeição, errou ao menos duas vezes conforme documentam seus artigos – ao tentar “exorcizar” a singularidade de Schwarzchild e ao renegar os modelos quânticos para representação do mundo subatômico. Acredito também que o livro de Labatut poderia ter ido ainda mais longe com a humanização dos agentes da Ciência se tivesse colocado ao menos uma cientista entre os homens protagonistas dos cinco capítulos.

Quando se desenvolve a relação entre Schroedinger e srta. Herwig, filha do dono da clínica a que recorre para tratar sua tuberculose, o físico fantasia e se masturba imaginando a adolescente. Vejo nesse exemplo uma cena que dificilmente seria imaginada por qualquer pessoa que passou anos estudando a função de onda, alicerce da mecânica quântica, aplicada em situações mais diversas do mundo. O que se estuda nos cursos de Física são os modelos explicativos como possíveis soluções para problemas concretos ou abstratos, e não a subjetividade das pessoas que as produzem. Conflitos e tramas como as de Bohr, Heisenberg e Schroedinger surgem durante as aulas tradicionais do curso como alegorias, às vezes fofocas ilustrativas, para dar algum alívio diante do estresse causado pelo estudo muitas vezes bitolado das equações. Um grande mérito de “Quando deixamos…” é colocar os gênios conosco na mesma fila da psicanálise, escancarando suas imperfeições, neuroses e em muitos casos a mais profunda incapacidade de lidar com seus próprios problemas pessoais.

A narrativa de Labatut atribui forte subjetividade ao modo como se faz Física, Química e Matemática. Sua voz narrativa, uma terceira pessoa onisciente que só se manifesta no último capítulo, é uma escolha que garante a quem lê um exercício extenuante de alteridade, fazendo com que nos coloquemos no lugar de mentes com imensa capacidade de abstração e que buscam experiências transcendentais em drogas, paixões, sexo, esportes, coletividades alternativas e imersões em máximo isolamento, a fim de acharem soluções para os problemas que os inquietam. Em “O coração do coração”, capítulo sobre Mochizuki e Grothendieck, narra a busca por caminhos revolucionários que poderiam mudar a forma de se fazer Matemática caso pudessem ser comunicados a outras pessoas. No entanto, sua frustração ao comunicar os resultados de sua pesquisa, assim como a própria dificuldade de comunicação, sugerem um desequilíbrio do ponto de vista psíquico, que na narrativa manifestam os diferentes modos que temos para a busca por soluções de nossas inquietações, cada pessoa partindo de sua relação com a própria realidade. Acredito que julgar as escolhas de Mochizuki e Grothendieck implicaria necessariamente em perpetuar algum tipo de preconceito, e Labatut consegue não fazê-lo em sua narrativa, que ganha nesse capítulo um caráter em alguns trechos antropológico, de tão grande que parece ser o esforço para evitar dar rótulos aos matemáticos.

Se constatarmos a partir da leitura de “Quando deixamos…” que sobra pouco de exato nas Ciências da Natureza e na Matemática, é possível mirar na subjetividade das ciências para criticá-la em pelo menos dois de seus aspectos.

Um deles diz respeito aos efeitos nos próprios cientistas de uma mente humana capaz de desenvolver raras abstrações. Em “A singularidade de Schwarzschild”, após surpreender Albert Einstein e outros cientistas com uma solução para corpos com massas extremas nas equações da relatividade geral, o alemão Karl Schwarzschild, com a saúde abalada por doenças decorrentes de sua participação na Primeira Grande Guerra e aflito por não se satisfazer com o buraco negro como tal solução, se questionava, manifestando certa loucura em seus últimos dias: “se esse tipo de monstros era um estado possível para a matéria, teria um correlato na mente humana?” Efeitos da busca por tantas relações entre conceitos de áreas aparentemente tão distantes poderiam ter levado Schwarzschild à loucura, assim como aconteceu com Mochizuki e Grothendieck?

O segundo aspecto diz respeito aos efeitos sociais da Ciência ou sua interferência direta na história da humanidade. Em “Azul da Prússia”, capítulo em que há uma passagem que conta como Fritz Haber revolucionou o modo de produção de fertilizantes, é apresentado como uma pessoa que ofereceu condições para se criar vida é a mesma que inventou um recurso que provocou a morte de tantos seres humanos, como o Zyklon B usado por nazistas em câmaras de gás.

São esses dois aspectos que parecem ser o eixo escolhido pelo autor em seus cinco capítulos. Por que homens tão geniais como os protagonistas de seu livro, apesar de tamanho domínio da linguagem à qual dedicaram suas próprias vidas, se perderam em sua própria humanidade, colocando em risco eles mesmos, as pessoas ao redor e até mesmo a própria sociedade europeia? Uma ideia que podemos ter ao lermos o livro de Labatut é que pessoas tidas como geniais, a partir do momento em que se envolvem visceralmente com sua pesquisa, perdem o controle de si e de sua produção. Essa reflexão é melhor caracterizada no último capítulo, em que o autor assume a voz narrativa e relata sua experiência com uma pessoa a quem ele se refere como jardineiro noturno, em um vilarejo no Chile. Ao final, há uma sugestão de que se corre o risco de estragar aquilo que tanto se quer conhecer. Para quem essa mensagem não surge ao longo dos quatro capítulos anteriores, Labatut dá a oportunidade de acessá-la em seu último parágrafo. Já para quem acessa o título original, que poderia ser livremente traduzido como “A terrível vegetação”, a ideia de matar um limoeiro para conhecê-lo melhor fica ainda mais forte enquanto metáfora do potencial problema da busca pelo conhecimento pelo caminho da Ciência.

Se nos enveredarmos por mais uma possível dimensão do livro, poderíamos ainda dizer que, na mescla entre ficção e não ficção guiada por uma narrativa que começa em terceira e termina em primeira pessoa, deixamos de entender o mundo quando abrimos mão de uma predisposição para entender as pessoas, como Labatut se predispõe a fazer com o jardineiro noturno, para irmos em busca de uma mensagem escondida na natureza que, quem sabe, venha a ser revelada por uma linguagem que talvez nunca sejamos capazes de saber se de fato existe.

Raio X

Com tosse e febre, fui ao pronto socorro em um sábado à noite. Tive esperança de o atendimento ser igual aos curtas da Pixar, rápido e com final feliz. Mas a espera estava lotada, para sorte de ninguém. 

Fui atendida depois de esperar por quase duas horas. Com suspeita de pneumonia, ofegante e já sentindo a dor da benzetacil que me esperava, fui para a radiografia. Depositei a guia na caixinha da fila, desejando que o técnico confundisse a ordem e me passasse na frente das duas pessoas na mesma sala. Eram uma criança de colo catarrenta e uma senhora gemendo de dor. Quando notei as duas em situação pior que a minha, me senti cruel. Pensei até em pegar água para as duas e aliviar minha culpa.

Nesse instante, um novinho saiu da sala de radiografia e folheou as guias. Tinha um jaleco impecavelmente branco e um sapato lustrado, elegante como um médico de uma clínica particular de estética. Quando me imaginei radiografada por aquele rapaz, a febre diminuiu em um grau, embora meu calor aumentasse.

Mas o mundo capotou assim que o jovem abaixou a cabeça para ver as guias das pacientes. Um frio correu minha espinha. Reconheci Jefferson, um ex-aluno, o último que eu esperava encontrar na porta da radiografia.

Jefferson era gamer profissional quando ainda estudava no ensino médio. Competindo e monetizando seu canal no Twitch, ganhava mais do que eu e as outras professoras. Seu celular era instrumento de trabalho, dentro ou fora da sala de aula. Não o largava nem no refeitório. Estava sempre de cabeça baixa, com os olhos voltados ao aparelho. Na época, eu imaginava o rapaz andando pela rua com o smartphone na mão trombando em árvores e postes ou tropicando em buracos nas calçadas. Nunca o vi ferido, o que me sugeria que era minimamente capaz de sobreviver, embora eu tivesse dúvidas sobre sua segurança. Havia professoras que o odiavam, enquanto eu tentava fazê-lo ter o mínimo de responsabilidade, pelo menos, com a própria vida.

Foi o que tentei fazer em uma aula muito séria de Física moderna. Percebendo como o rapaz me ignorava como sempre e sem o menor constrangimento, tentei mais uma vez envolvê-lo no assunto da aula.

– Jefferson, já ouviu falar sobre o acidente com césio-137 em Goiânia?

– Já. 

Ele apertava a tela com polegares ferozes.

– E aí? Divide com a sala o que você sabe sobre isso.

– Foi que nem Chernobyl.

Até seus colegas de fundão tentaram segurar os risos.

– E uma peça de máquina de raio X num ferro velho é igual a um reator nuclear exposto após uma explosão?

– É – e o celular seguia apanhando de suas mãos. 

Só faltava eu implorar pela atenção do rapaz.

– Queria que você percebesse que essa aula aqui pode ser útil para sua segurança e das pessoas com quem você for conviver.

Ele mal respirava. 

– Pois é.

“E se esse menino um dia tiver que trabalhar com radiação?”. Como só fui capaz de imaginá-lo trabalhando com videogames e afins, essa minha preocupação desapareceu rapidamente. Hoje não tenho dúvida de que nesse instante um anjo safado passou dizendo amém. Até então eu não acreditava nessas coisas de querubins, céu, apocalipse e inferno, do qual eu estava na ante sala. Nunca apostaria um tostão em vê-lo com diploma ou trabalhando em algo a ver com Física, muito menos operando uma máquina de raio X. Mas ali no pronto socorro, para prolongar minha dor e meu sofrimento com uma máquina radiativa potencialmente mal calibrada, estava Jefferson: jovem, elegante, técnico, sem celular na mão, procurando a próxima paciente para bombardear com seu terrível feixe de radiação.

Quando ouvi meu nome ser chamado pela segunda vez, eu fugia pelo corredor, com passos rápidos, ofegante, com febre e sem olhar para trás. Torci pelas vidas da criança e da senhora. Eu preferia cuidar sozinha da minha pneumonia com florais ou chá de alho a entrar na radiografia com o ex-gamer. 

Já no caminho para outro pronto socorro, pensei ter exagerado ao fugir. O atendimento de Jefferson poderia ter sido indolor, cuidadoso e sem risco de câncer. Me arrependi por não ter ficado, pois teria que recomeçar a saga do atendimento médico em outro pronto socorro. Mas o arrependimento passou quando percebi que Jefferson havia confundido a ordem das guias – e que não vivo em um curta da Pixar.

Conversa entre máquinas

Lúcia me cumprimentou na academia.

Lúcia, essa pobre mulher, deixou escapar um pedaço da verdade em plena era da informação. Academia não é lugar de amor. Onde já se viu cumprimentar, em pleno treino, uma travesti que você não conhece e puxar assunto? Veio ainda sem celular ou fone de ouvido. Queria eu sentir falta de gente que não usa redes sociais e acaba se colocando em situações constrangedoras como essa. Quem não rola a barra, não deveria rolar na esteira.

A academia é um templo, o lugar privilegiado da dor, principalmente para quem não está na escola, no hospital, na prisão, no hospício, no trabalho ou com a família. Os aparelhos de musculação nos garantem a dor individualizada, ótimos para pessoas convictas como eu, que preferem a autoflagelação com máquinas a todas as outras maravilhosas experiências sensoriais que o progresso social tem sido capaz de nos oferecer. É um momento ímpar que não deveria ser interrompido por conversas e outras amenidades com ninguém. A senhora simpática em busca de fisioterapia, jovens abdicando de exercitar a mente para cuidar do corpo, o cosplay de Hércules e seus espelhos, a manequim da Lycra, intelectuais que cansaram do birô. Não importa. As únicas pessoas com quem deveríamos conversar no salão é a da recepção, que nos recebe com seus olá-tudo-bem em tetrapak, ou a que nos instrui como promover nossa autotortura nas pilhas de metal.

Não, não sou radical. Há de concordar: quem ama se cuida, e cuidar de si é garantir a ordem das coisas dentro de uma academia. É nesse museu dos sentimentos humanos mais primitivos, em que o homem pode se tornar ainda mais homem, que nossa cultura ancestral tem sido deixada em conserva. Por isso, temos o dever moral de impedir que a conversa de uma estranha durante um treino coloque em risco nossos rituais mais antigos.

Até me esforço em aceitar que alguém puxe um papo entre os aparelhos, desde que seja mais curto que conversa com motorista de ônibus. Já pedi para a gerência um “fale apenas o indispensável” pendurado na catraca; até agora, nada. Perceba, ali tem placa pra tudo. Economize água. Não use celular no treino. Mantenha seu pet amarrado. Estacione ali, aqui não. Aperte o botão de pânico. Ajuste o comportamento. Higienize a máquina após o uso. Racismo não. Verifique se o mesmo assombra o local. Só não tem o mais importante dos avisos. É óbvio que vai surgir uma desavisada para pôr em risco toda nossa herança pré-histórica do culto ao corpo.

Até então, os únicos contatos que tive com pessoas usuárias em academias foram visuais. Sempre em silêncio. Nunca me falaram nada, só me aplicam um olhar de estranhamento, com aquele cenho reprovador franzido. Principalmente quando estou no vestiário. Não há dúvida de que esse olhar é para me lembrar de que em academia não se conversa, muito menos onde mulheres se vestem. É como se as pessoas empaticamente se colocassem como vigilantes, cuidando para que as outras não se esqueçam nunca de que, por mais que a placa não esteja ali, é preciso agir com correção.

Só esqueceram de combinar com a Lúcia.

– Oi! Tudo bem com você?

Óbvio que não!, pensei comigo. Isso é uma academia! Se estava tudo bem, a partir daquele instante, em que duas desconhecidas começavam uma conversa em um lugar sagrado, o oceano Atlântico aumentava em mais um centímetro.

Tentei reconhecê-la. Se já fosse minha amiga, teríamos carta branca para a conversa. Infelizmente não era. O terror deve ter se estampado em meu rosto, porque ela foi logo se justificando:

– Meu nome é Lúcia. Sou lá da Giovanni, mas quando chego em casa a academia de lá fica tão lotada! Então tô tentando essa aqui da Leopoldina a essa hora, que é quando saio do trabalho.

Em resposta, sorri, saí da minha cadeira adutora, fui até sua abdutora e me apresentei, cumprimentando minha carismática vizinha. Foi minha autodefesa. Afinal, se ela foi tão longe naquela charla e mostrou não saber muito bem como as coisas funcionam ali, o que mais ela seria capaz de fazer?

Jaqueline

Estou na casa de meu pai, à uma viagem de distância da minha. Aqui, tanto ele quanto sua esposa insistem em me chamar pelo meu nome antigo.

Há quinze dias, eu havia feito ao casal uma visita com o único objetivo de comunicar minha mudança de nome como parte de minha transição de gênero. Desde então, é como se aquela visita nunca tivesse acontecido. Nunca se referiram a mim como Jaqueline. De tanto me chamarem pelo nome que não uso mais, tanto por telefone nesses últimos dias quanto hoje enquanto estou aqui, chego a ficar em dúvida se aquela visita ocorreu, se comuniquei minha transição e meu nome a meu pai e sua esposa ou se aquele evento, o mais esperado de minha vida, foi um sonho, uma memória inventada ou uma alucinação.

Percebo que me isolei hoje durante toda a tarde em um quarto com o celular até descarregar, como uma velha hermitona em um bunker, evitando interagir e ouvir meu nome antigo, fugindo do inevitável.

Passei minha vida escondida. Não vou mais fazer isso. Vou agir. Já é noite. Chamo ele e ela na sala.

– Gente, deixa eu perguntar uma coisa pra vocês. Vocês não conseguem me chamar por Jaqueline?

Silêncio de cinco segundos ou horas, não contei. A sala está a meia luz. Meu pai, inerte, mãos nos bolsos de seu roupão azul atoalhado, com olhar frio e pouco iluminado, quase sombrio, exala o medo do conflito. Ele me encara. Sua esposa, de avental, ouviu minha pergunta enquanto enxugava alguma louça na porta da cozinha. Ela, como parte de sua missão de vida de manter a harmonia ao seu redor, se corrige:

– Pensei nisso. Eu pensei nisso, mas para gente é difícil, né?

Meu pai volta a respirar e consegue falar.

– É, filho. São 40 anos te chamando assim.

– Entendo vocês. Sei que é difícil, mas usar meu nome antigo me desconforta.

– É verdade. Mas ele – ela aponta para meu pai com uma mão enquanto, com a outra, segura ao mesmo tempo uma vasilha e um pano de prato, e postula – vai continuar te chamando assim por mais algum tempo, tá?

É tanto IPO abrindo por aí que devem acreditar que minha vida também é negociável.

– O problema é que isso me desconforta, gente.

– Mas e ele? – ela aponta de novo para meu pai, de novo inerte. – Mas tudo bem, a gente vai tentar.

Eu queria matar meu nome antigo. Ela, o assunto.

Preciso escrever essa história. Venho para o quarto, agora não mais um bunker, mas uma janela aberta. A esposa, com fé na missão, liga a tevê, o rádio, o celular, qualquer coisa que rompa o silêncio que faz a família sentir a dor da mudança. Enquanto teclo, meu pai se aproxima, me dá tapas nas costas – seu carinho – em busca de alguém para compartilhar sua célebre frustração:

– Agora perdi minha última esperança de ter um neto.

A esposa ouve de longe, vem dar um retoque na ideia sem muito nexo de seu marido. Deixei estar. Amém – não é o que dizem?

O que soa como um final para algumas pessoas, para outras é o mais empolgante dos inícios.

Colã

Era uma casa alugada, com um portão vermelho na frente, uma garagem para dois carros entre o portão e a janela da frente da casa. O chão da garagem e do corredor lateral à direita, pelo qual podíamos acessar as salas de aula, tinha o piso de caquinhos vermelhos. Ao final do corredor, o quintal dava lugar a um parquinho. Lembro de um balanço, uma gangorra, um escorregador e um chão de areia. Nos muros brancos havia buracos, que cavocávamos com as mãos à procura de pedras escuras que brilhavam. Achávamos que tinham algum valor. Alguma vez, em uma catarse geológica, todas as turmas escavavam freneticamente a areia, alucinadas atrás de petróleo, provocadas pela notícia da descoberta feita havia pouco por uma das crianças instrumentalizadas com uma infalível pá de plástico.

Esse era o cenário do Passo Livre, centro de recreação infantil do qual guardo algumas das minhas memórias mais antigas. Nele, fiz o Maternal e o Jardim, entre meus 4 e 6 anos de idade. Às vivências nesse espaço dediquei quase um terço do meu tempo de vida até então.

Não lembro se eu passava manhã e tarde nesse lugar. Lembro de todo dia de chuva ser épico, pois a rua da escolinha alagava e demorava demais para a água baixar. Ficava ilhada nas salas de aula, com uma multidão de crianças alvoroçadas, mais as professoras. Duvido que eram pagas por cuidarem de nós naquelas horas extras úmidas, de chuva e de lágrimas das crianças de classe média querentes de suas mães. Houve caso de sairmos apenas à noite da escola, de tanto que choveu.

É nesse cenário em que se passou o sonho mais antigo de que me recordo.

Minha família me inscreveu no judô, atividade de contraturno. No Passo Livre, meninos faziam judô e meninas, balé. Quem escolhia a atividade de contraturno era uma pessoa das mais efêmeras porém mais importantes em nossas vidas. Essa pessoa é mestra do destino de muitas outras, o que normalmente nos poupa de escolhas muitas vezes difíceis. Quem me recebeu em seus braços quando fui parida foi um médico que, investido de sua autoridade, me atribuiu meu primeiro título: – É menino.

O rótulo que recebi ao nascer me livrava de passos tão livres na minha primeira infância. Se era menino, deveria fazer judô com outros meninos.

O uniforme do judô era o kimono. Branco, tecido grosso, com uma faixa amarrada na cintura. Kimono é kimono em qualquer lugar do Universo. Não dá para saber quais são as leis da natureza no interior de um horizonte de eventos de um buraco negro, seja um estelar, desses pequeninhos, ou dos misteriosos supermassivos, dos quais até hoje pouca gente arrisca chutar qual sua origem. Todavia, aposto tudo o que tenho que dentro do horizonte de eventos de qualquer buraco negro o kimono é aquele uniforme monótono, pasteurizado, hermético, homogeneizador, idêntico ao que eu vestia no Passo livre.

No balé, as meninas usavam body vermelho. Na época, chamavam colã. Não lembro se usavam meia calça branca, preta ou nenhuma. Também não lembro de eu dizer para minha mãe ou meu pai sobre eu querer usar colã. O que lembro até hoje é de um sonho que tive naquela idade: todas as crianças com que eu estudava no Passo Livre usavam o colã vermelho do balé. Eu, inclusive. Estávamos no corredor, era um dia claro, brincávamos de qualquer coisa, algumas correndo, outras acertando o seu traje, para não deixar a alça embolar no ombro. Meninos, meninas, todas de colã. Ali, naquele espaço-tempo, não havia lugar para kimono. Lembro de uma felicidade ao acordar. Felicidade acompanhada de um sentimento de estar sonhando com algo errado. Tanto que o sonho me marcou e marca até hoje, e demorei décadas para contá-lo a alguém.

Sempre fui um fracasso no judô, assim como fracassei em muitas atividades físicas, artísticas e esportivas às quais me obriguei a praticar ao longo da vida. Não tinha tesão, como diria Roberto Freire.

Minha memória mais antiga do fracasso esportivo está registrada em uma fita VHS. Para minha assombração permanente, uma vizinha comprou a gravação da cerimônia de encerramento das atividades da escolinha, para ter registrado aquele momento memorável da infância de sua filha única, mimada e querida. O ano deve ter sido 1988. Conhecendo a vizinha, essa fita deve estar inteira, empilhadas com outras de aniversários e casamentos, pronta para reviver o desgosto de meu pai qualquer hora dessas.

O que nós, do judô, deveríamos fazer na cerimônia de encerramento era muito simples. Cada menino deveria entrar no palco e dar uma cambalhota. Simples, muito simples. Menos para mim. Até hoje não sei dizer qual foi minha dificuldade. Todas as crianças faziam o movimento completo e direitinho: abaixar-se de frente para o tatame, colocar nele o topo da cabeça, posicionada entre as mãos então apoiadas e, com as pernas, dar um impulso no corpo, fazendo um arco no ar com os pés até apoiá-los à frente no tatame. Eu não. Eu dava uma cambalhota de costas. O movimento era tão errado que não deve existir até hoje um nome para ele. O mais perto, e não menos errado, para um nome para o que eu fiz foi “cambalhota de costas”. Eu sentava com as costas viradas para o tatame e, ao invés de apoiar primeiro a cabeça no solo, eu naturalmente colocava primeiro as costas, depois a nuca e, por último a cabeça no tatame. Eu dava o impulso no corpo usando os pés, fazendo também um arco com eles sobre meu corpo, mas terminava sentada de costas para a saída do movimento. Longe de ser uma cambalhota, era um movimento absolutamente diferente do programado para a cerimônia de encerramento. Ensaiamos durante muitas aulas, todo mundo fazendo corretamente, menos eu. Nem ao observar as outras crianças me senti segura para fazer a cambalhota.

Eu queria acertar. Mesmo criança, já tinha em mim que errar é errado. Em casa, na cama da minha mãe, também fazia o movimento. Errado, mas preocupada em fazer minha cambalhota personalizada com algum equilíbrio, acertando do meu jeito. Por alguma iluminação inexplicável, algo me deu coragem para fazer como o sensei ensinou. De súbito, estava eu fazendo a cambalhota certa, aquela socialmente aceita, na cama de minha mãe. Chamei-a para lhe dar uma pitada de orgulho por minha realização. Afinal, era o movimento que ela deveria me assistir fazer no final do ano, na tão esperada cerimônia em que todas as famílias de todas as crianças da escola estariam presentes para ver e ostentar com orgulho as capacidades hercúleas de sua prole.

Minha mãe, acompanhada de minha prima mais velha, que estava em casa para uma visita ou para um café, me presenteou com parabéns. Minha prima, desavisada, tentou ser cuidadosa:

– Isso é perigoso! Cuidado, você pode quebrar o pescoço.

Meu pai não estava em casa, então não me viu dar a cambalhota. Desde então, nunca mais a repeti. Na cerimônia, fiz do meu jeito, o jeito seguro. Eu não queria quebrar o pescoço, seja lá o que isso pudesse vir a ser. Ouvi muitas vezes, durante muitos anos, meu pai dizer a seus amigos e a pessoas da família – fazia questão de me chamar para perto e ouvi-lo contar – que o maior desgosto que dei a ele na vida foi aquela cambalhota na cerimônia de encerramento de atividades do Passo Livre. Essa memória de seu desgosto me perseguiu por anos, mais de um terço do tempo de vida que tenho hoje. Certa vez, já com maturidade suficiente para reler as mensagens deixadas para mim desde a infância, contei para meu pai, em um desses momentos em que se exibia vaidoso de suas decepções paternas, como minha prima terrorista participou do meu fracasso. Meu pai não sabia. De lá para cá, nunca mais tocou no assunto.

Talvez meu pai já tenha aprendido a lidar com sua frustração e apagado seu ressentimento, ou tenha reconhecido que um possível sonho de ter um filho judoca, com kimono branquinho, bem cuidado e premiado por cambalhotas perfeitas não dependia apenas dele, por isso não passava de um desejo irrealizável.

Por outro lado, venho aprendendo que meu desejo de ser quem eu quero e de me expressar como eu sou depende só de mim – e só pode depender de mim. Hoje, enquanto me desprendo do peso e do título que aquele médico me deu quando nasci e que aceitei carregar por muito tempo – tempo demais, aliás –, realizo meus mais profundos e ancestrais desejos. E uso os colãs das cores que eu gosto.

Astronomia, lojas, méqui e atemoia

Estou quase lá. É a última aula e fecho a semana. Para qual sala mesmo vou agora? Ah, 3ª série A. Será que hoje a sala vai ter de novo apenas duas pessoas? Olha, nem isso! Tem uma pessoa apenas. E essa eu não conheço.

– Bom dia!

Nossa… por que não me respondeu? Vou insistir.

– Bom dia! Tudo bem?

– Oi, tudo bem?

– Qual é seu nome?

– Giovana.

– Oi, Giovana. Não lembro de você. Hoje é seu primeiro dia presencial numa aula de Eletiva?

– Isso.

– Você chegou a participar de alguma aula remota de Eletiva neste ano?

– Não.

– Também não viu os roteiros e as atividades que foram enviadas para serem feitas em casa, é isso?

– Isso.

– Certo. Meu nome é Jacqueline e dou aula de Eletiva para o 3º A. Para outras salas, dou aula de Física e Tecnologia. Nossa eletiva é sobre Astronomia.

E agora? Começo do zero?

– Bom… quando você ouve a palavra Astronomia, o que vem à sua mente?

– Nada.

– Nada, nada?

– É. Nada, nada.

Como vou fazê-la parar de olhar para o celular enquanto conversa comigo?

– Não vem nenhuma imagem, nenhuma palavra…?

– Não.

– Ok. Quando você olha pro céu à noite, o que você vê?

Ufa, agora que ela largou o celular, preciso fazer com que ela não olhe pra ele de novo.

– Ah… Vejo a Lua e é difícil ver estrelas.

– Já temos um bom começo.

Mentira. Isso não estava nos planos. Preciso inventar alguma atividade a partir daqui. Mas, mano do céu, não é possível que essa mina não conheça absolutamente nada de Astronomia. De que planeta ela veio?

– Jura que você não conhece nada de Astronomia?

– Juro…

– O que você gosta de fazer? Vou fazer umas perguntas para tentar te conhecer melhor e então escolho por onde a gente começa a aula, tá?

– Tá.

– Então, o que você gosta de fazer?

– Ah… não sei dizer…

– Você não tem um hobby, alguma coisa que você faça no tempo livre?

– Não.

– Nada? Nem viajar, conhecer alguma coisa diferente?

– Viajar.

– Pra onde você gosta de viajar?

– Já viajei pra Bahia.

– A passeio?

– Pra visitar minha avó.

– Bacana… Onde você mora?

– Em Diadema.

– Eita! Você vem pra Pinheiros só para estudar ou você trabalha aqui também?

– Trabalho.

– Em quê?

– Eu tenho uma loja.

– Nossa! Você já trabalha e tem uma loja? Que legal! Onde fica essa loja?

– Em Diadema.

– Ou seja, você mora em Diadema, vem para Pinheiros estudar de manhã e volta pra Diadema para trabalhar?

– Não, eu trabalho aqui em Pinheiros na loja dos meus pais e tenho uma loja em Diadema.

– Ah! Tô entendendo! Então você tem uma loja e contrata pessoas para trabalharem para você?

– Mais ou menos. Na verdade é minha vó quem toma conta da loja.

– Entendi. Quando você não está com sua família em casa, você está com sua família na loja dos seus pais ou na sua loja.

– É.

Pelo menos agora ela já não olha mais para o celular. E sorriu. Vou arriscar.

– Acho que já dá para avançar. Vou te mostrar um site que funciona como planetário. Já viu ou usou esse site aqui, o Stellarium?

– Não.

– Nunca ouviu falar?

– Não.

– Então olha só. Você conhece alguma constelação? Consegue olhar para o céu noturno e identificar alguma constelação?

– Não. 

– Vou te mostrar algumas.

Droga. Ela voltou a olhar para o celular. Isso aqui não tá funcionando, e ela tá cagando pra se galáxia, estrela ou planeta é a mesma coisa ou não. E agora?

– Acho que tem um vídeo aqui que pode ajudar você a ter alguma curiosidade sobre Astronomia. É o primeiro episódio da Série Cosmos, do Neil Tyson. Conhece?

– Não.

– Então vou projetar pra você. A história da série é essa aqui…

Cacete! Bastou aparecer a apresentação do episódio, voltou pro celular e abandonou a projeção. Lascou-se, não tenho mais o que fazer aqui hoje. A mina não tem a menor cara de pau de disfarçar. Só eu e ela na sala e ela cagando pro que eu tô propondo. E se eu acabar a aula aqui agora, e dispensá-la para ela ir pra casa de uma vez por todas? Não, não vou desistir. Esses 20 minutos que sobraram têm que servir pra alguma coisa. Não é possível que a gente não consiga avançar nem um milímetro nessa aula.

– Giovana, me diz uma coisa. Vou continuar fazendo umas perguntas para você. Como eu disse, para eu te conhecer e saber o que podemos fazer aqui na Eletiva. Você disse que não participou das aulas de Eletiva nesse ano, certo? Essa foi sua primeira semana na escola, e não fez nenhuma atividade em casa durante esse ano todo? Chegou a fazer alguma atividade em 2020?

– Não.

– Então não conseguiu fazer nada desde março de 2020 até essa semana?

– Isso.

– E como você se sente com isso? Digo… Você passou um ano e meio sem entrar em contato com nenhuma atividade da escola. Como você se coloca diante disso? Você tem obviamente um problema aí com o qual você tem que lidar, que é fazer algo diante da falta de um ano e meio de atividades na escola. Te incomoda saber que ficou tanto tempo fora da escola e ter deixado de estudar por um período tão longo?

– Sim… porque a escola é um lugar que eu venho para ter sabedoria, e agora vou ficar sem ela, né?

Vixi… sabedoria? Essa resposta foi protocolar. Vou por outro caminho.

– Sim, sim. Por outro lado, você já trabalha, então a escola talvez não tenha feito tanta falta assim para você. Você já ganha seu dinheiro, já tem sua loja, já se vira muito bem. Então, para que a escola, né?

– É… não senti tanta falta não.

– Então você está vindo para cá só porque é obrigada?

– Isso.

Desse jeito nunca vou conseguir convencer essa moça de que a escola tem alguma função para ela… ah, foda-se!

– Parece que, se você puder ou assim que você acabar o ensino médio, você vai continuar ocupando todo seu tempo com trabalho ou família, até você conseguir aposentar. Ou tô me enganando?

– Sim, acho que sim…

Parece que ela tá pensando em algo. Talvez eu tenha conseguido dar uma oportunidade para ela pensar no futuro de um jeito que ela não pensou até hoje. Será?

– Ok. O que você gosta de comer?

– Méqui.

Tá ficando cada vez pior. Não entro num McDonald’s há uma década, e a última vez foi só pra usar o banheiro. Que diabos eu sei sobre méqui?

– Você gosta de comer chocolate?

Ela sorriu.

Sim, gosto muito.

– Joia! Você gosta de atemoia? 

– De quê?

– Atemoia. É uma fruta. Nunca viu? 

– Nunca.

– Vou te mostrar.

Google, atemoia, imagens… pronto.

– É essa fruta aqui. Eu também gosto muito de chocolate. Você pode duvidar, mas se me oferecerem essa fruta e um chocolate e eu tiver que escolher uma das duas opções, eu escolho atemoia.

Ela fez cara de quem acreditou. Não vou dizer pra ela que depende do chocolate.

– Atemoia pra mim tem um sabor maravilhoso. E deve ter um monte de comida pelo mundo que podem ser mais saborosas que atemoia ou chocolate. Aí te pergunto: se você só se dedicar ao trabalho e à família, você vai conseguir conhecer coisas novas? Não digo apenas atemoia ou comida, digo qualquer coisa que exista no mundo, ou mesmo as coisas que ainda não foram inventadas. Tem como você conhecer se você só trabalha?

– É… não tem.

– E o que você precisa para poder conhecer coisas novas?

– Preciso de tempo.

– É… tempo…

Puta que me pariu. Essa resposta eu não esperava. Na boa, não sei o que eu esperava que ela respondesse. Ótimo! O celular tá abandonado na mesa já faz um tempo.

– Pois bem. Não quero te convencer de que você tem que estudar ou de que você tem que gostar de Astronomia. Tô jogando a real aqui para você. Professor parece que tem sempre que convencer estudante de alguma coisa, né? Não quero te convencer de que a escola é importante ou que você tem que vir pra escola ou ir pra faculdade pra ter sabedoria. Jogando a real, quero sim te convencer de que o mundo tem um monte de coisa interessante pra gente conhecer, pra além de trabalho, família, méqui e atemoia, e com certeza não é a escola que vai te mostrar todas as coisas novas e diferentes que existem. Mesmo se a escola pudesse fazer isso, só faltam dois meses para você nunca mais pisar aqui… essa responsabilidade de te dar acesso às novidades deixa de ser da escola e passa a ser completamente sua. É você quem vai ter que pensar em como conhecer o novo e pensar em viajar pra lugares diferentes – obviamente, se você quiser. E parece que você tem interesse em viajar pra lugares diferentes da Bahia, não?

– Tenho sim.

– Bom, é isso. Acho que podemos finalizar assim. Continua pensando nisso. Pensa em casa no que você precisa fazer daqui pra frente e como você pode se responsabilizar pra ter tempo em sua vida e assim poder conhecer coisas novas, tá?

– Tá bem, professor. Obrigada.

E tem quem diga que a gente precisa usar a escola para falar ainda mais para estudantes sobre mercado de trabalho e dar espaço para aulas de como empreender. O discurso do empreendedorismo já é tão forte que já se tornou senso comum. Vida se tornou sinônimo de trabalho, como se não houvesse um universo sem limites para além disso. Afinal, a quem serve uma escola que cumpre a função de reprodutora de uma ideologia que deturpa o significado do trabalho e se materializa como barreira para pessoas conhecerem o novo ou o diferente?

Potência

Enquanto crescia, ouvi que eu não podia
não poderia
não seria capaz
não conseguiria
De tanto ouvir, ficou em mim
essa tal impotência
se tornou destino
juramentado veredicto
do qual me tornei o capataz
É para seu bem, ele dizia
sem saber o que é
autoestima
autenticidade
desejo
liberdade
como se assim eu pudesse ser em paz

Não dá mais!

Cruzo a linha por mim traçada no chão
a marca da impotência
aquela trazida comigo
abandono-a por outro conflito
e a deixo pra trás
O que virá pela frente?
encruzilhadas nada cartesianas
agora, diferente
já confio: posso, consigo
contemplo em mim a potência
ponte para ser mais

Uma vacina contra uma pandemia pedagógica

Mais do que nunca, a educação se tornou uma commodity. No meio ao caos das aulas remotas, vulgarmente chamadas de EAD, não importa como – nem mesmo se – crianças, adolescentes, pessoas adultas estão aprendendo. Importa é que se aproveite esse momento difícil e adverso para se reinventar o mercado da educação. Todo o entusiasmo e brilho no olhar de quem prega a nova era educacional, colocando enfim a tecnologia no habitus de educadoras, em especial da rede estadual de ensino de SP, esconde um imenso lobo distópico sob a pele de uma ovelha fofa e romântica.

O senso comum nos diz que educação é sacerdócio. Não dá para duvidar dessa verdade repetida desde que educação e catequese eram irmãs siamesas. Nos dizem ser fundamental as educadoras se sacrificarem. Temos ouvido isso em seguidas lives de diretores, secretários de educação, governadores, ministros. Em meio a seus gabinetes encarpetados e perfumados, nos cobram um sacrifício, como se já não nos sacrificássemos desde sempre.

Enquanto eles nos cobram sacrifício, nós, educadoras, nos sentimos perdidas, sem saber para onde correr. Se fosse como no meme do John Travolta, ainda estaríamos mais ou menos confortáveis – deslocadas de um contexto, mas ainda dentro de alguma ordem, reconhecendo alguma coerência. No entanto, hoje não é apenas a ordem que está em questão, mas também a própria normalidade.

Estamos à deriva, mas em uma deriva diferente da antiga. Antes, trava-se de uma deriva minimamente disfarçada, ou fingida. Ainda era possível esconder nossa solidão pedagógica atrás de um sorriso. Cada professora com seu remedinho, no cada-um-por-si da saúde mental. Por mais crescente que fosse o grau de cobranças por índices, números, resultados e eficiência na aplicação das diretrizes pedagógicas da secretaria de educação jogadas sem dó em nosso colo, ainda dava para miseravelmente engolir seco e tocar o barco para algum lugar. Era preciso fazer, fazer sempre, seguindo um caminho dado por quem nos dava a linha. Nossa sobrevivência dependia desse fazer. Apesar de toda a dor, sofrimento e violência desse jogo, mesmo sendo obrigadas a nos dopar com sertralinas, risperidonas e rivotris, ainda havia uma linha para nos nortear.

Agora, nos tiraram até mesmo a linha. Puxaram nosso tapete. Nem chão temos mais. Não temos nem mesmo as ferramentas para nos mantermos firmes em nosso fazer.

Professoras, que há pouco tempo haviam trocado um celular de tecla por um smartphone só para poder usar o WhatsApp, queriam se comunicar com aqueles familiares que há anos já não enviavam SMS nem mesmo faziam ligação telefônica. Essas professoras agora precisam integrar sua conta de e-mail a um serviço de nuvem e a aplicativos de videoconferência. Outras, que tinham resistência a usar um diário de classe digital, agora precisam assistir aulas de edutubers farialimers que usam metodologias incrivelmente novas. Se já tivessem entrado numa sexta série do fundamental II para saber o que é aquela criança que vem lá do fundo da sala, se esquivando de apagadores e lápis que cruzam os ares, para puxar o avental da professora perguntando se é para usar caneta azul ou colorida, a profissão desses edutubers seria outra: seriam professores. Mas não são. Edutubers e “professores de estúdio” não são professores nem professoras. Mesmo não o sendo, nos surgem com dicas de como professoras devem reinventar sua rotina, sem ter a mínima ideia de qual é o cheiro de uma sala de aula de uma escola pública estadual. Não fazem ideia do que representa uma professora ser obrigada a criar documentos de texto com planilhas e exportá-los para pdfs que serão enviados a estudantes por uma plataforma online de que nunca se havia ouvido falar até duas semanas atrás. Todas elas, centenas de milhares de professoras, são abrigadas a abrir um app experimental para aprender a utilizar o próprio app, ignorando que é experimental. Muitas dessas professoras estão isoladas, sem ter nem mesmo outra pessoa ao lado para ajudá-las a fazer a busca correta na loja de aplicativos para instalá-lo.

Não me parece ser à toa que não falamos mais de Black Mirror e suas surpreendentes distopias tecnológicas. Estamos vivendo uma realidade que deixa aqueles roteiristas de boca aberta. Não precisamos mais daquele serviço pago de streaming para assistir séries de terror. Nossa realidade, mediada como nunca por uma infinitude de dispositivos e mecanismos tecnológicos, se tornou o próprio terror.

Minha hipótese é de que estamos em um experimento behaviorista, para agregar valor à commodity que produzimos. Já que é da adversidade que surgem novas oportunidades, pra repetir um dos jargões empreendedores que tentam nos enfiar goela abaixo em ATPCs, quem dá a linha da educação resolveu puxar nosso tapete de vez, e agora assiste como nos comportamos.

A lista de absurdos cresce a cada send ou reply que é clicado. Professoras enviam áudio chorando, em desespero por não conseguirem ler todas as mensagens de orientação que recebem no grupo de WhatsApp. Compartilham sua indignação por não conseguirem encontrar no grupo da escola aquele arquivo de relatório formatado pelo diretor para ser preenchido. Assistem lives do secretário de educação, vídeo de acolhimento de professor universitário falando sobre sua superação ao longo de uma vida difícil, palestras de pessoas que agradecem por a Segunda Guerra Mundial ter acontecido e ter ajudado a criar o absorvente interno. As corajosas professoras que, apesar do desamparo estrutural, sempre bancaram o próprio sacrifício compulsório da escolha serem educadoras, muitas delas alfabetizadoras, passaram horas e horas em um planejamento remoto procurando respostas simples no meio da verborragia de pessoas que há muito assumiram cargos burocráticos. Essas, escolheram se distanciar já há muito do chão da escola, fugidas da sala de aula por medo e insegurança de lidar com crianças curiosas. Não foi o coronavírus que provocou esses burocratas a se isolarem atrás de suas escrivaninhas e birôs.

Aquelas professoras, exercendo seu sacrifício pedagógico e ao mesmo tempo desesperadas em meio ao caos do planejamento remoto, só queriam saber quando e como, a partir de agora, teriam que responder dúvidas de estudantes, por onde teriam que enviar as atividades, o que precisaria ser feito para não ficar com falta, entre outras dúvidas absolutamente pertinentes. Ora, uma vez que nossa rotina docente foi demolida pela pandemia, nada mais humano que o medo de não saber por onde seguir a partir daqui. O grande problema é ninguém se responsabilizar por tirar suas dúvidas.

Em meio a tantas questões, o chat da live tinha dezenas de mensagens por minuto com nome completo e RG de professoras. Na dúvida de como seria feito o registro de presença e com medo de ter seu salário reduzido graças à falta de informação generalizada, melhor se prevenir expondo seus dados pessoais em uma plataforma pública e insegura.

A tecnologia chegou com tudo para reinventar o abandono de nossa realidade escolar, à sombra paralisante de uma pandemia pedagógica provocada por fundos de investimento, edutubers e burocratas de carreira. E, em meio a esse experimento que remonta a ilha de Lost, tivemos as respostas mais evasivas ao longo de três dias estressantes de planejamento por meio de plataformas online: as perguntas mais simples não foram respondidas, nem mesmo quando diretoras se dirigiram ao secretário e outros engravatados.

Dá para sentir que o baixo clero dessa burocracia escolar, em especial as direções ou “gestões” das escolas estaduais, estão no mesmo lugar que nós, professoras de chão de escola. Diretores, vices, coordenadores tentaram por um tempo fingir que está tudo bem. Até conseguiram fazer uma boa cena no início. Já não conseguem mais. Estão à beira de um ataque de nervos, “de um infarto”, como ouvi do diretor da escola em que trabalho.

Muito se tem dito que a partir do coronavírus tudo será diferente, o mundo será outro, as sociedades terão novos valores, mais dignos, mais humanos. As relações sociais estão sim passando por uma quebra de paradigma, não há muita dúvida quanto a isso. Seja a pessoa que sente falta de um abraço, seja aquela preplexa com os tristes rumos da economia, todas elas concordam que nossa realidade está diferente. Mas se engana quem acredita que há uma transformação social por vir, esperando uma renovação dos valores.

Como se, de maneira natural e espontânea, sem uma prática orientada por uma intenção, a louça e o banheiro se lavassem sozinhos. Não existe vacina milagrosa, nem contra a Covid-19, muito menos contra a peste que adoece nosso sistema de ensino a cada clique que damos, a cada e-mail que respondemos. Assim como Veríssimo nos contou sobre Antares, quando os defuntos voltaram a seus túmulos, a hipocrisia centenária daquela província coronelista garantiu que tudo voltasse ao normal o quanto antes. Aqui será o mesmo: assim que o movimento dos cemitérios voltar a ser como era antes, nossas vidas voltarão àquela linha desde sempre desenhada pelos outros – a não ser que, enfim, tomemos deles o lápis e façamos nossa história por nossas próprias linhas.

Hoje, temos um tapete sendo puxado. E nos observam, para diagnosticar como reagimos. Avaliam cuidadosamente nosso comportamento para, em seguida, escolherem a dedo nossas “boas práticas”. Assim se reinventa o mercado de educação, que terá em breve novos mecanismos de segmentaridade e discriminação, agregando valores a essas práticas futuramente transformadas em produtos inovadores, vendidos pelas grandes corporações da educação, como Instituto Ayrton Senna, Fundação Lemann e todos aqueles que dizem ser “Pela Educação”.

É isso que vai acontecer com a matéria-prima há anos sendo cultivada por nós: por você, professora que com muito custo aprendeu a lidar com a própria solidão pedagógica. Também por você, desamparada há anos por gestores assediadores, sem acolhimento algum diante de um caos escolar sem materiais, espaços e tempo adequados, impressoras e salário digno. E com você, que teve que se virar nos trinta para cuidar de sua saúde mental ao mesmo tempo em que aprendia a lidar com crianças em situação de vulnerabilidade. Uma de nós ainda pode ter a sorte de ter seu nome citado quando sua videoaula gravada para bebês de dois anos for adotada como exemplo de história de sucesso em meio à pandemia, e transformada em material didático que vai acompanhar, no futuro, apostilas de sistemas como Anglo, Positivo e Objetivo.

Por mais que fingíssemos, nosso sistema de ensino nunca foi normal. Hoje, de tanto conversarmos sobre saúde pública, temos muita clareza de que trabalhar com educação no Brasil não é nem um pouco saudável. Não é normal termos que nos responsabilizar pelos problemas criados por quem não conhece nossa realidade e cobra nosso sacrifício para resolvê-los. Não devemos nos submeter a um novo paradigma de violência travestida de inovação, agora mediada por aparatos tecnológicos. Devemos com urgência negar as regras desse jogo cruel que nos estão obrigando a jogar. Se a violência é a mesma para todas nós, é para negá-la, enfrentá-la e liquidá-la que devemos nos unir. É buscando aquela professora parceira que, assim como nós, está perdida, que construiremos a solidariedade para superarmos essa cilada tecnológica. Devemos formar grupos crescentes, cada vez maiores, de pessoas indignadas que se apoiem mutuamente, deixar diferenças antigas para trás e dar um fim a todo esse abuso e assédio que vêm nos consumindo.

Não basta ter que lidar com as incertezas e desgovernos decorrentes da pandemia, ainda querem que banquemos uma reinvenção de um sistema inteiro de ensino. Esse boleto não é nosso, não precisamos sofrer e adoecer ainda mais por uma demanda criada por quem não olha por nós. A educação nunca deveria ter se tornado commodity, e não pode continuar a ser. Para enfrentarmos o assédio diário decorrente de um sistema de aulas remotas excludente e frustrante para professoras e estudantes, e garantir a educação como ferramenta de construção de uma sociedade livre, justa e que valoriza o conhecimento, é fundamental nossa organização com as pessoas e professoras mais parceiras, com quem esteve até hoje ao nosso lado, ombro a ombro, diariamente lutando por uma educação de qualidade no chão da escola. Hoje, é fundamental nossa organização para negarmos a realização de atividades e produção de documentos meio a um clima de incerteza, medo, terror e absurdo assédio. Só assim continuaremos sendo autoras de nossas próprias práticas educacionais e de nossa existência, construindo pela solidariedade condições para avançarmos rumo a uma sociedade não apenas diferente, mas sim melhor, mais justa e apoiada em uma escola em que prevalece uma educação engajada e transformadora.

Exorcismo na escola

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Durval Discos, dirigido por Anna Muylaert (2002)

Hoje assisti a um exorcismo dentro da escola.

Intervalo de almoço. Entrei na sala de professores. Uma estudante estava deitada no sofá. Tem sido muito recorrente, em média uma vez ao dia, estudantes com crises, desmaios, tremedeiras, choros, paralisias, gritos, convulsões. A gestão da escola normalmente leva as pessoas em crise para esse sofá, e uma ou outra professora acompanha a crise enquanto a secretaria liga para a responsável da família para comunicar o ocorrido.

A frequência de crises de ansiedade e pânico aumentou no segundo semestre. Não tenho formação em psicologia, sei que a escola (uma das causas) e os sintomas (efeitos) juntos formam uma seta que aponta para essas síndromes. Depois, em conversas com estudantes, ouço os diagnósticos médicos. Sou incapaz de diagnosticar, sei que são patologias e que alguém da psiquiatria deve ser mais capaz de entender esses casos que uma pessoa da ortopedia, por exemplo.

Ao redor da moça de 15 ou 16 anos, deitada e em uma situação no mínimo preocupante, amigas a observavam apreensivas. O roteiro diário infelizmente se repetia, a não ser por um absurdo detalhe. Uma das amigas falava com a estudante que tremia, dando-lhe ordens. Na verdade, as ordens eram ao demônio obsessor da estudante prestes a convulsionar.

– Sai desse corpo! Em nome de Jesus, eu ordeno que você deixe esse corpo! Vou contar até três e quando chegar no três ordeno que você vá embora. Um, dois, três, sai!

Em um átimo pensei ter sido transportado para o mundo invertido. Rejeitei aquele espaço frequentado há cinco anos, diariamente. Não reconheci as paredes, nem móveis, armários, nem as pessoas. É como se tivessem trocado a chave da fechadura da minha casa sem eu saber, e eu ali, tentando encaixar uma peça de metal em um furinho torto, não mais em forma de l, mas de g ou ζ. Depois de alguns segundos, percebi que estava em um culto pentecostal deslocado no espaço-tempo.

Dormi pouco? Alucinei? Me enfiaram numa experiência de realidade aumentada sem meu consentimento? Que açúcar usaram no café do almoço? Deveria eu estar sentindo falta de línguas?

A menina sofrendo, as professoras, ao menos três, mais gestão acompanhando a cena, e estudantes ao redor fazendo orações para livrar a amiga daquilo que acreditavam ser uma possessão.

Estou sendo crítica demais por achar que as pessoas com formação para trabalhar em escola (licenciaturas, pedagogia, psicopedagogia, gestão escolar etc.) deveriam se responsabilizar por resolver aquele problema usando o conhecimento por elas adquirido ao longo de anos de… estudo?

Eu deveria ter tirado uma foto da minha cara para depois entender minha reação. As amigas que tentavam acudi-la olharam para mim esperando que eu tomasse alguma atitude. Uma ajuda adulta? Bom, sou professora de Ciências e ateia. Queria ajuda ou esperavam uma crítica? Talvez uma reprimenda. Um olhar de descaso. Um riso de menosprezo de quem não crê em deuses – bastava isso para darem razão à sinistra que reivindica mais religião nas escolas e na ciência.

Nada disso. Saí da sala de professores e neguei a cena. Não socorri a estudante, não mexi em nada, não falei com ninguém. Fugi daquela esquete de filme de terror.

Quem pode imaginar que um dia vai presenciar um exorcismo dentro de uma escola? Se eu tivesse imaginado previamente, teria me preparado. Mas quem com esperança na humanidade e expectativa de a escola ser um lugar coerente pode contar com tamanha bizarrice?

A professora mediadora estava preocupada por não conseguir falar com pessoas da família. “Só dá caixa postal”. Enquanto ia e voltava pelo corredor em um movimento harmônico simples entre secretaria e sala de professores, à espera de um contato bem sucedido com alguém responsável pela estudante e acreditando que a menina em sofrimento pudesse melhorar, a mediadora deixou as estudantes amigas encarregadas de exorcizarem a possuída.

Vivi para presenciar um exorcismo protagonizado por estudantes dentro da sala de professores de uma escola estadual. Não sei se devo me perguntar, mas… o que falta?

Me deem mais alguns anos nesse lugar macabro e presenciarei à insana cena máxima do filme Durval Discos, ou algo pior. No lugar em que trabalho, parece não haver limites para o absurdo.

Crítica demais

Aprendi certo dia que o dito pelos outros sobre mim diz mais sobre os outros do que de mim. Tenho tentado carregar essa ideia comigo.

Hoje percebi que para minhas colegas de trabalho é ruim ser uma pessoa crítica demais.

Dessa constatação me vêm duas reflexões.

A primeira delas: como é possível trabalhar com educação sem ser uma pessoa crítica pra além de qualquer limite? Como alguém pode ser responsável em um processo de humanização sem se repensar e se criticar o tempo inteiro, e sem fazer o mesmo com tudo ao redor?

A segunda reflexão diz respeito ao critério de criticidade. Qual é o limite para se ser uma pessoa crítica? Que porra de régua é essa que mede uma pessoa que é crítica de menos ou demais?

Situação fictícia: uma diretora estimula estudantes a denunciarem uma professora na ouvidoria da secretaria de educação. Não pergunte o motivo, mas são várias estudantes que, nessa situação inventada, confirmam para a professora que a diretora, sim, estimula essa denúncia. Abro minha régua da criticidade e pergunto, me colocando no lugar (fictício) dessa professora: como reagir com a medida certa de crítica? A professora, ao descobrir essa apunhalada deveria sorrir pra diretora sem reclamar e entender que a sabotagem vinda de uma pessoa com quem trabalha faz parte do jogo. Cachinhos dourados da crítica, nem uma gota a mais. Criticidade nem muito quente, nem muito fria. Por outro lado, crítica com medida abaixo do esperado: sorrir e agradecer à diretora. Crítica demais: reclamar da faca enfiada nas costas e que encharca a roupa com sangue, como se o mundo não pudesse ser diferente.

Por que uma situação de injustiça não deve ser criticada? Por que essa situação de injustiça não deve ser criticada em ambiente escolar? Para não se passar por pessoa chata? Para manter o ambiente em harmonia?

Me parece que tudo gira em torno de mudar ou não a ordem das coisas. É o que diferencia os sufixos das palavras alienígena e alienada. Ou a pessoa se aliena da realidade e aceita a ordem das coisas ou vai passar a vida trocando desesperadamente a roupa da solidão que carrega em um mundo em que a inércia é lei e não apenas uma tendência.

Não me enxergo lustrando o status quo. Não posso ser livre em um mundo em que há pessoas escravizadas. Não posso deixar de criticar o mundo em que a liberdade não é plena. Indiferença diante da injustiça e do sofrimento do outro é a negação da consciência que deveria nos impulsionar a sermos mais do que já somos.

O que predispõe as pessoas a construírem solidariedade é a forma como se olha pro status quo. Só existe uma justificativa para não sermos críticas demais ao status quo: é dele nos beneficiarmos.

Na escola sou uma professora rotulada como crítica demais. Esse rótulo é para mim uma aula imensa sobre as pessoas com quem divido o chão de meu trabalho. E são justamente elas que me mostram ao lado de quem posso lutar, de qual lado da história devo estar.

Festa

Entrei mancando na sala de aula. Foram vinte dias afastado. Primeiro por uma psiquiatra. Depois, por um ortopedista. Vinte dias afastado da sala de professores doentia e da gestão tóxica. Vinte dias sem a poesia das vivências com estudantes. Naquele átimo da passagem pela porta daquela sala, senti a mistura da saudade e da desintoxicação correndo por mim.

Minha aula estava preparada. Primeiro, contaria à turma, com detalhes, tudo o que me aconteceu nesses meus dias. Em seguida, corrigiria os exercícios deixados para casa três semanas atrás.

Mas fui pega de surpresa. Quando entrei, gritos, palmas, alegria, festa. Não acreditei. Custei a acreditar. Ainda não sei se acredito. Alguém ganhou uma bolada na mega-sena há uns dias. Ontem, ganhei a melhor recepção de estudantes que uma professora poderia ganhar.

Eu estava desatenta. Antes de entrar, várias estudantes me cumprimentavam e perguntavam se eu estava melhor. Naquele rotineiro tumulto que é a troca de aulas, até vi alguém subindo as escadas com um bolo na mão. Era uma estudante da turma que teria aula comigo, minha primeira aula depois das licenças médicas. Eu, no topo da minha ingenuidade, dei oi a ela quando passou por mim pela escada segurando a bandeja com aquela doçura falsamente escondida. Devo ter pensado: “Um bolo! Para onde? Para alguma sala. Certamente não é a nossa sala. Então para qual sala ela vai? Por que ela leva o bolo para uma sala que não é dela? Não tem outra pessoa para fazer isso? A direção já proibiu estudantes de festejarem em sala de aula. Será despedida de alguém?”

Era eu a mais inocente das pessoas da vila inteira. As estudantes levaram dois bolos para comemorar meu retorno. Mesmo depois de ver a festa se armando, com todo mundo cúmplice ali, entre as quatro paredes da sala, eu perguntava:

– Gente, para quem é esse bolo?

– É pra você, professora!

Fiquei olhando ao redor. Refrigerantes e café surgiram do nada. Tinha uma pequena fila de estudantes vindo me dar abraços e perguntar se eu estava melhor. Eu respondia e agradecia cada uma delas. Minha felicidade era imensa, abissal, mas incrédula. Tive dificuldade de raciocinar e aceitar o que via diante dos meus olhos.

– Gente, falando sério. Para quem é esse bolo?

– É para você, professora!!!

As estudantes souberam que eu tive um diagnóstico de depressão e que eu havia me acidentado no trânsito, por isso me afastara por tanto tempo, como nunca. Prepararam a festa, segundo elas próprias, porque sabiam que eu estava triste e que a festa poderia me fazer bem.

Depois de comer e beber, se organizaram e sentaram para conversar comigo. A aula preparada ficou para depois. Ainda bem. Houve apenas uma conversa franca, eu dividindo com todas elas o que eu sentia e vivia, e sendo acolhida. E festa, com muita gente me abraçando e me desejando melhoras.

Esse foi o dia mais feliz que eu já vivi dentro de uma escola.

“A escola é um lugar tóxico”

A escola é um lugar tóxico. Essa frase surgiu em três das quatro salas de aula em que me dispus a conversar essa semana sobre o massacre na EE Prof. Raul Brasil, em Suzano.

A Secretaria de Educação emitiu um documento orientando as atividades a serem realizadas nas escolas. Uma delas foi a produção de cartazes sobre o que estudantes sentem quanto ao ocorrido. A outra atividade proposta foi uma conversa sobre a dificuldade de lidar com a pressão que se sente, usando como metáfora uma pata de elefante sobre o peito.

Essa foi a orientação da SEE. Na escola, não houve qualquer sistematização de atividades, nem mesmo uma conversa com estudantes. Professoras que procuraram a direção pedindo orientações de o que fazer diante de uma situação tão crítica e que abalou praticamente todas as escolas do estado, não receberam uma boa resposta: “quem quiser pode usar seu tempo de aula para conversar sobre o assunto, mas não há nenhuma atividade sistematizada para todas as séries”. Foi um cada-um-por-si.

A situação que já não era boa passou a ficar potencialmente pior. Óbvio e triste: poucas professoras se dispuseram a conversar sobre o ocorrido. Conversei com algumas professoras, pouquíssimas propuseram atividades por conta própria e de maneira isolada. Copo meio cheio? Até se pode dizer que foi um avanço – não à toa estudantes agradeceram a essas professoras por terem aberto espaço para convesar sobre o que sentiam sobre o massacre.

Achei que, mesmo sem sistematização, eu deveria também abrir espaço para ouvir. Lá fui eu, quinta-feira de manhã, 7h, primeira aula desde a notícia ter tomado o noticiário. Entro então na primeira sala, terceira série do ensino médio, e pergunto se as pessoas ali estão bem e como se sentem. Não houve resposta. Depois de muito tempo entendi que estavam tão abaladas com o ocorrido em Suzano que não conseguiam nem verbalizar o que sentiam. Sem resposta, avaliei que não seria bom forçar o assunto. Comecei a aula e foi nítido o pouco envolvimento e a apatia quase generalizada. Tentei fazer uma piadinha sem graça, recebi risos mais sem graça ainda. Já no último terço da aula, deixei de rodeios e fui direto ao assunto. “Mas e aí, gente, como vocês estão se sentindo com relação ao que aconteceu ontem em Suzano?”

O que ouvi nessa conversa curta se repetiu nas outras três salas em que puxei o assunto. Medo, foi a primeira resposta em todas elas. Disseram sentir que aquilo poderia acontecer com qualquer escola, inclusive a nossa. Me perguntaram quais são as rotas de fuga da nossa escola, mostrando a profundidade do terror e da preocupação que lhes afetavam.

Achei que deveria não apenas ouvir, mas fazer algumas provocações durante aquela convesa. Eu não imaginava outras professoras tocando no assunto e, se tocassem, não tinha convicção de como o abordariam. Cabia a mim então desenvolver aquele tempo de maneira por um lado acolhedora e, por outro, que tirasse a molecada daquele estado de choque.

Fiz perguntas para tentar saber se imaginavam como seria possível evitar que aquilo acontecesse em nossa escola, uma vez que me senti responsável por tentar desestabilizar todo aquele medo. Foram vários esforços simultâneos da minha parte: não deslegitimar o medo que sentiam, ouvir o que tinham a dizer, entender a origem daquele medo, sondar quem responsabilizavam pelo massacre, verificar se reconheciam as diferentes violências que devem atravessar as relações daquelas pessoas envolvidas em Suzano e, dando alguma linha àquela minha intervenção, traçar um paralelo entre a escola de Suzano e a nossa. Até poderia ter sido menos propositivo e, assim, ouvir mais. No entanto, fiz o que fui capaz de fazer naquele momento.

Essa dinâmica de discussão sistematizei tateando. Não planejei nada previamente, simplesmente achei que poderia ouvir, entender o que sentiam e tentar ajudar de alguma forma. A dinâmica naturalmente se repetiu em todas as quatro salas em que suportei falar sobre o assunto.

Na quinta-feira, foram três salas. Não sei como consegui segurar meu choro na frente de todas elas. O sentimento generalizado era de desamparo. Em uma sala, nomearam esse desamparo de solidão. Reconhecem como a escola é um lugar violento para muita gente. Têm clareza de a escola ser abandonada pelo Estado, uma vez que sabem que “tá todo mundo fudido aqui”, mas não tem profissionais competentes para oferecer acompanhamento psicológico às estudantes. Quando sugeri que poderiam se ajudar mutuamente, tentando de maneira sensível se disponiblizarem a se ouvirem (de maneira paliativa, pois concordo que a assistência social numa escola estadual deve ser de responsabilidade do Estado), me disseram: “Como, se todo mundo aqui sofre de algum jeito? Como a gente consegue se ouvir e segurar a barra dos outros se não temos quem nos ajude a segurar a nossa?” Uma moça contou chorando que quando levam os problemas da escola para a família, pais e mães comumente lhes dizem que as queixas são frescuras e besteiras, dando-lhes pouca atenção.

E eu ali, tentando dar uma força para aquela molecada, segurando minha bronca e meu choro. Enquanto ouvia e concordava com tudo o que ouvia, sentia o mesmo desamparo e solidão deles e delas, estudantes, mas no meu lugar de professor sem qualquer apoio, também abandonado e isolado num mar de descaso, ordens arbitrárias, indiferença e ansiolíticos. Na minha tentativa de intervir para diluir um pouco aquele medo, passei a sentir o mesmo medo daquelas pessoas ali esquecidas, sistematicamente ignoradas pelas famílias, pelas professoras, pela direção, pela escola como um todo, pelo Estado e por qualquer outro sujeito que se diga responsável por aquelas vidas.

Prestes a desmontar, depois da terceira aula fui para o intervalo. A coordenadora (?) ignorou meu pedido de fazer uma intervenção coordenada em todas as salas voltada para um acolhimento, visto que praticamente todo mundo ali manifestou medo. O diretor dizia ser importante estudantes usarem uniforme dentro da escola, para evitar que pessoas desconhecidas se sintam à vontade de entrar na escola desapercebidas e assim se misturarem na multidão, por exemplo, durante o intervalo. Como se o uniforme pudesse acabar com o medo e a violência que as ameaça. Ou ainda como se fosse natural usar de terrorismo psicológico, jogando o próprio medo de estudantes contra eles mesmos a fim de garantir que utilizassem o tão fetichizado uniforme da escola.

Ali estava eu, tão sozinho, isolado e perplexo quanto uma estudante na sala de aula.  Desisti então de tentar conversar mais sobre Suzano nas outras aulas que daria ao longo do dia. Aquela solidão começava a me fazer muito, mas muito mal, e na falta de alguém que me ajudasse a cuidar de minha saúde mental, da qual já não conseguia eu cuidar sozinho, desisti de cuidar da saúde alheia.

Até que veio a sexta-feira. Na segunda aula que dei no dia, percebi de novo um silêncio apático, mas mais agudo que no dia anterior.

– E aí, gente, como vocês estão se sentindo? Tem a ver com Suzano? Já conversaram com vocês sobre isso?

Não haviam conversado com essa turma. Era a décima segunda aula que assistiam desde quinta-feira. Eu era pelo menos a décima professora diferente a entrar ali, e a primeira a mostrar disposição em trocar ideia com aquela turma.

Uma dezena de pessoas passaram por ali e não foram capazes de perceber a tristeza da sala e a necessidade que tinham de compartilhar o que sentiam. Se perceberam, ignoraram, porque nem mesmo procuraram outras colegas para dividir a angústia de ter que lidar com uma sala abatida. Ignoravam a dor, o sofrimento e o medo em que a escola estava mergulhada.

Será que as professoras comemoram em casa o silêncio amedrontado dessa sala?

O diretor se gabou de ter juntado algumas turmas no pátio para uma homenagem à comunidade de Suzano, ter tirado foto e enviado a um jornal de grande circulação. Não fez nem sequer um movimento de tentar ouvir o que sentia a comunidade da própria escola.

Em três salas, surgiu a mesma frase durante as discussões: a escola é um lugar tóxico. Tanto o é quanto é sintomático um lugar tão tóxico ser palco de uma atrocidade, um massacre. Penso se há mesmo em nossa sociedade outra instituição tão violenta quanto a escola, que silencia, ignora, abandona e obriga as pessoas a serem quem não são, numa roda-viva desumanizadora e adoecedora da qual não escapam docentes, muito menos estudantes.

Divagações em outro planejamento

Estou no planejamento anual da escola em que trabalho. Um mês depois de terem iniciado as aulas. Escolha da gestão. Se fosse sério, o planejamento viria antes das aulas. Se fosse meio sério, já nos teriam perguntado nossas impressões sobre a escola ao longo desse primeiro mês. Tenho esperança de me perguntarem qualquer ano desses.

Não quero ser rigoroso. Me esforço para não pegar pesado nas críticas e no enfrentamento aos gestores. Gestores são pobres criaturas que transbordam generosidade. Deram seu tempo para nos transmitir hoje, com qualidade, seu conhecimento e suas boas intenções. Assim seremos boas professoras ao longo do ano. “Tudo pelo bem dos alunos” de nossa escola, abençoada por bandeirantes e jesuítas, a nata de nosso estado-locomotiva.

Assisto a apresentação. Epígrafe de Michael Jordan. Você não sabia? Grande educador, comunicador social, engajado com a construção de uma escola de qualidade, com escuta. Terá sido Jordan um bandeirante da virada do século XXI? Deve ter um bom motivo para estarmos vendo seu rosto projetado na tela nesse instante em um planejamento de uma escola estadual. Freire, hooks, Piaget, Makarenko, D’Ambrosio, Ferrer, Montessori, Pacheco, pessoas que poderiam ter escrito algo de efeito e relevante, mas se desperdiçaram. Deveriam ter ido mais longe, faltou ambição. Queria eu ser um tatu para cavar com vigor e entusiasmo, todavida. Talvez assim encontrasse motivos de não terem usado referências pedagógicas na epígrafe de uma reunião… pedagógica.

É dado o play no vídeo motivacional. Sempre tem um vídeo produzido por alguma empresa que deu supercerto, case de sucesso. Como se escola fosse uma empresa.

Empresa. É aquilo que produz mercadoria. Mercadoria pressupõe a fetichização de algo com um valor simbólico que não o teria até ser imerso em uma ideologia. Empresa é uma instituição ideológica. Buguei. Esse povo diz que escola não é lugar de ideologia, que não devemos, enquanto educadoras, trazer nossas ideologias para o espaço escolar. Um gestor o acabou de dizer. Então se eu falar que é escola-empresa, estou livre de ideologia?

Ainda me assusta um vídeo empresarial motivacional ser exibido no planejamento escolar numa escola. Como se fosse novidade. Escola-empresa. Projeto sistêmico de treinamento ideológico para a obediência, consumo, alienação, três em um.

Folheio meu caderno. Tenho registros antigos de outros tantos planejamentos. São quatro anos mostrando como o discurso é sempre o mesmo. Repetir mil vezes para ser verdade, ouvi certa vez. Por trás, a defesa da autoridade da gestão e de sua responsabilidade de botar ordem na escola desorganizada, porque nunca trabalhamos em equipe. A menos que tenha uma liderança, um gestor de verdade. Também ouvi isso certa vez. As falas se repetem sílaba a sílaba. Até daria para fazer um bingo, pode ver. Precisamos vestir a camisa da… escola(?). Ano passado cada um atirou para um lado, nesse ano isso não pode acontecer. Trabalhar em equipe é todo mundo remar para o mesmo lado. Todos juntos. Nosso objetivo é o bem do aluno, não podemos deixar que nossos projetos pessoais atrapalhem… Deveria ter feito uma lista, criado cartelas com algumas dessas frases distribuídas aleatoriamente. Daria um bom jogo, uma cartela por colaboradoras de nossa… escola, não é?

Desenho um trator destruindo este prédio. É o prédio da… o pior é que a estratégia deles funciona, já não sei mais se é escola ou empresa. No desenho, estou dentro do trator. Antes, a cada planejamento era um desenho de suicídio. Aparentemente estou melhorando. Hoje, meu desejo é de destruir tudo o que nos foi tirado em nome de um bem maior.  Meu trator é especial, desses de demolição que tem uma bola enorme balançando e derrubando paredes como naquele jogo Torremoto. Me excito ao imaginar a música da queda dos tijolos do prédio sendo transformado em ruínas. O som grave dos tijolos. Enfim, escola tombada. Espera. Com uma belezura dessas que demole tudo, por que me deter a uma escola? Eu deveria começar pela estátua do Duque de Caxias. Não. A estátua do Borba Gato é melhor. Depois Caxias. Ou ainda um roteiro de demolição. Começa no Borba Gato, vai para o Obelisco, estraga a Assembleia Legislativa, bate sem dó no deixa-que-eu-empurro do Brecheret e vai derrubando tudo o que for prédio público no caminho até a praça da assassina da Princesa Isabel, no centro. De lá, finaliza nesta linda escola da qual vos escrevo. Dependendo do humor, nem o Niemeyer no meio do caminho escapa. Sinto uma pena, que logo passa, de estudantes que ficariam sem mais um prédio de treino de cópias.

Lembro de um ex-estudante que trabalha numa empresa de limpeza urbana. Me contou que sua atividade é registrar em uma tabela de Excel um número que lia em um visor. Repete o procedimento algumas vezes ao longo do dia. É para inserir estudantes nesse mercado de trabalho que existem prédios de treino de cópias como esta escola.

Porra, é o segundo vídeo, ainda no primeiro dia de reunião. A semana vai ser longa. A inculcação é maciça, pesada, intensa, como marreta na bigorna. O primeiro vídeo foi sobre trabalho em equipe. Que repertório monotemático incrível tem a videoteca da Secretaria de Educação. O segundo pode até passar como ingênuo, chega a ser fofo. Fala sobre rotina. Também variação de um mesmo tema, repete o texto do monge cruel que assassina a vaquinha empurrando-a no precipício. Se você é do mundo corporativo ou da rede estadual de ensino sabe do texto ao qual me refiro. É até boa a reflexão: o que nos impele a acostumar e nos impede de mudar? Hum. Cabe questionar a rotina do trabalho da gestão, de nos massacrar diariamente, de nos desumanizar?

Volto a pintar meu trator dos sonhos. Poderia eu melhorar o projeto do Killdozer de Colorado?

Pronto, a dinâmica em grupo. É quando nos expomos e a gestão nos mapeia, nos estudam para saber nossos limites, o que queremos, até onde vamos, o quanto somos capazes de resistir.

“Ah, mas como você implica com gestores. Você tem TOD, é? Como gosta de enfrentar os outros”.

Se são outros, não estão conosco. Indício de que não estão: nos ouvem? Não há escuta da gestão para nós, professoras. Quer ver? Leia até o fim e descubra em que momento teremos espaço para colocar nossa voz. Se nos ouvirem, nossa fala será como poeira. Juntarão e jogarão fora. No máximo nos escutam apenas para saber como nos silenciar.

Era para ser uma dinâmica em grupo, ou equipe, já não sei mais – socorro, alguém decida. A supervisora já narrou a segunda bíblia seguida. Ela pratica apineia? Ela fala e mal respira. É uma habilidade. Bonito é ver pessoas empolgadas e entusiasmadas consigo mesmas. Eu deveria agradecer a Deus por ter tanto conhecimento nos iluminando hoje, ainda mais vindo de uma pessoa tão ilustrada como a supervisora. O conhecimento dessa pessoa cai em mim como uma chuva dourada. Há quem goste, afinal.

Grupo ou equipe? Não sei. Importa? A gestão já sabe o que fazer conosco. Um amigo respondeu “acho que somos um grupo, adoro trabalhar em grupo, grupos são mais heterogêneos que equipes, valorizam a diferença”. De que importa? Se o mestre nos tratar como equipe, seremos. Porque obedecemos. A doutrinação é eficiente. O mais importante é remarmos todas no mesmo sentido, no sentido do sonho do mestre.

Divagar assim poderá me levar um dia a algum lugar? Certamente não será ao do sonho do mestre. Falhou, dirá de mim. Será seu maior equívoco.

Minha escola é um lugar macabro

O diretor da minha escola pediu para eu devolver a chave do laboratório.

Fatos como esse me fazem acreditar que as leis naturais se transformam quando passo pelo portão e entro na escola em que trabalho. É como se eu estivesse em um buraco negro, em que as simestrias, conservações e expectativas construídas pelo conhecimento humano não são mais válidas, e novas regras são regidas por seres transcedentais, deuses diferentes dos que nossa mente é capaz de conceber. Como aquele lugar macabro do Bezerra, em que piranha come piranha e cobra corre de sapo.

Situação como essa nunca havia acontecido antes, nem mesmo das escolas em que fui demitido.

Sou professora dessa escola há 5 anos. A administração das chaves é centralizada pelo menos desde meu ingresso. Todas elas são guardadas em um armário na secretaria. Não é qualquer pessoa que entra na secretaria a qualquer momento. A gerente da escola sempre argumenta que ali é o ambiente de trabalho dela, e ela precisa de concentração para, por exemplo, fazer o pagamento de professoras sem cometer erros. Justo. Também não tenho interesse em entrar na secretaria a todo momento.

Meu interesse é poder abrir o laboratório quando eu precisar, e que qualquer professora abra uma sala de aula quando precisar. Por isso acho absolutamente legítimo uma professora ter uma chave para ter acesso ao seu ambiente de trabalho.

Na escola em que leciono, esse desejo é tão realizável quanto esperar um avião pousar em um ponto de ônibus. Quem tem acesso as chaves são, a princípio, as inspetoras e a direção. Sala de vídeo, auditório, sala de projeção, sala de computadores, laboratório de ciências, salas de aula. Quer abrir uma sala? Veja como é simples.

  • Primeiro, é preciso encontrar uma inspetora na escola. Se vocẽ trabalha no Estado, sabe que não há contratação de inspetoras há anos. No último ano, uma inspetora mudou de escola, outra se aposentou e uma terceira pediu licença para terminar a faculdade. São três a menos, e hoje só restam três agentes de organização escolar hoje na escola, sendo duas delas dedicadas às atividades na secretaria. Matrícula, organização da vida funcional, atender e fazer ligações para famílias, tudo isso fica de lado quando é preciso resolver alguma ocorrência nos três andares da escola. é mipossível você colocar a cabeça para fora da sala e ver uma inspetora ali à disposição para resolver uma ocorrência, você precisa andar pela escola até achar alguém para te ajudar. Então nada mais justo que, na falta de inspetoras e no meio de uma aula, uma professora precisar de uma chave de um laboratório e ter que correr atrás de uma pessoa que pode estar em qualquer espaço para tirá-la de uma função que já não deveria ser sua, certo? Tudo isso porque a chave não é disponibilizada de maneira direta a nós, professoras. 
  • Depois, você precisa argumentar que a sala que você precisa usar foi reservada por você. Você pode ter a sorte de a inspetora ou qualquer pessoa da gestão pressupor que você pediu uma chave porque você fez a reserva. No entanto, essa não é a regra. Entendo que há pessoas que pedem a chave sem reservar a sala, e isso acontece porque muitas vezes há uma falha na comunicação, ou um registro em um campo errado na ficha de reserva – equívocos acontecem. Mas à gestão é mais sensato achar que o natural é a professora pedir indevidamente o uso do espaço. Então te interrogam para você provar que você não é uma pessoa infratora a priori.
  • Deve-se esperar a inspetora ir até a secretaria buscar a chave. Pode acontecer de a inspetora estar ocupada com alguma tarefa que não deveria ser sua – na era da precarização, isso é normal – ou, por exemplo, perdendo tempo impedindo um estudante de chegar à sala de professores para falar com uma professora (?), ou ainda registrando numa folha de caderno durante a entrada quem entra com ou sem uniforme – para depois alimentar a capivara de estudantes com a gravíssima infração de ir para escola sem a roupa adequada.

Observe o contexto. Há uma herança paleozoica de um modelo de escola em que cada professora precisa se virar nos seu 50 minutos para realizar tarefas pedagógicas e não pedagógicas. Sabe aquela história do currículo oculto? Precisa treinar estudantes a serem copistas e obedientes. Não pode deixar na sala de aula estudantes a sós, sem uma pessoa “responsável” (como se estudante fosse sinônimo de irresponsável e, ainda, como se professores fossem necessariamente mais responsáveis que estudantes), porque podem querer sair da sala de aula sem permissão, pixar uma carteira ou realizarem qualquer outra atividade não permitida. Apesar da demanda mecânica por obediência, disciplina, respeito e responsabilidade, numa lógica reforçada e perpetuada diariamente em silêncio por nós, essa dinâmica do funcionamento fabril de uma escola pode cair por terra para uma professora desperdiçar 15 ou 20 minutos de sua aula por uma tarefa que ela poderia muito bem fazer sem mediação.

E na tentantiva de driblar um processo kafkiano para encurtar essa epopeia e ter acesso a um espaço pedagógico, pedi algumas vezes às diferentes diretoras que as chaves das salas de uso de professoras fossem guardadas na sala de professores. Nunca fui atendido. Na última vez em que pedi, a diretora naquela ocasião me respondeu que não poderia facilitar o acesso às chaves porque “não é assim que as coisas funcionam”.

Para nunca mais ter que gastar aulas procurando por chaves, perdendo um tempo precioso que poderia estar sendo pedagogicamente usado ao invés de burocraticamente desperdiçado, resolvi gastar dinheiro do meu próprio bolso para copiar a chave que abre o laboratório.

Por mais de um ano, ninguém havia percebido que eu tinha uma chave do laboratório comigo. Nem mesmo desenvolvendo atividades semanais no laboratório e sempre compartilhando uma passagem para a copa usada pelas funcionárias da escola, cujo acesso se dá pela mesma porta, ninguém percebera ou veio me perguntar como cheguei ali.

Até que um dia entrei no laboratório às 7h da manhã. Ao longo de anos, quando eu não tinha a chave, nunca conseguira entrar tão cedo no laboratório, porque todos os funcionários da escola estavam empenhados fazendo a entrada de estudantes na escola até as 7h10, registrando nomes de estudantes com uniforme indevido e outras atividades essenciais do ambiente escolar racional. Quando eu precisava abrir a sala às 7h, me pediam para esperar terminar o horário de entrada para então o coordenador ou a inspetora poder me atender e pegar a chave para mim, que até então ficaria trancada na secretaria.

Às vezes penso que eu sou o errado dessa história toda. Eu deveria mesmo é agradecer por a secretaria poder ser destrancada pela própria escola, e não ser necessário um pedido formal protocolado à secretaria de educação para abrir a porta da secretaria por um funcionário público exclusivo para esse serviço. Eu deveria estar reclamando de barriga cheia por ter que esperar apenas 10 ou 15 minutos para poder abrir a secretaria e então ter alguém para me dar uma chave e, aí sim, eu poder abrir o laboratório.

Na maioria das vezes, já acostumado com o impedimento de acesso, eu ia ao laboratório às 7h10, horário em que as funcionárias da limpeza já tinham acesso à chave dele (porque elas têm permissão de entrar na secretaria para pegar a chave), e entrava com elas.

Mas quando eu tirei a cópia da chave, tudo ficou mais fácil a ponto de eu conseguir entrar às 7h no laboratório. Demorou meses para acontecer de eu entrar antes das funcionárias da limpeza. Quando aconteceu, uma das funcionárias me perguntou como eu havia entrado no laboratório tão cedo. “Entrei com essa chave”, mostrei para ela o meu chaveiro pessoal, “mas só você sabe que eu tenho essa chave comigo”.

Confiança é aquilo que você muitas vezes dá para alguém e quase sempre não recebe de volta. No mesmo dia, a vice-diretora me perguntou como eu entrei no laboratório se eu não tinha pedido a chave para ninguém.

Duas semanas depois, o diretor me chamou para conversar. Queria que eu devolvesse a chave do laboratório.

O argumento dele é que ele precisa da chave para organizar os espaços da escola. Diz que eu abri precedente para outras professoras tirarem cópias de outras chaves – como se houvesse mais uma pessoa imbecil como eu a ponto de gastar do próprio dinheiro para fazer uma aula render mais.

Argumentei que se ele queria de verdade organizar os espaços da escola, não precisaria da minha chave, mas sim de uma conversa com todas as professoras, com seus ouvidos abertos ao que cada uma delas têm a falar sobre o uso dos espaços na escola. Para mim, parecia tão óbvio que eu não estar com a posse da chave não faria diferença alguma para “organizar os espaços da escola” que eu acreditei naquele momento estar conversando e tentando convencer o diretor de sua proposta poder ser substituída por outra mais democrática e envolvendo mais pessoas, inclusive outras professoras de ciências.

No entanto, ali era apresentada mais uma vez a encenação da fábula do lobo e do cordeiro.

Tenho a experiência de ter recebido uma chave do laboratório de ciências em TODAS as escolas em que trabalhei, assim como também a receberam todas as outras professoras dessas escolas. Há escolas em que professoras recebem a chave do estacionamento e da entrada da escola. O razoável para mim, dado o que vivi, é ver cada professor de Ciências recebendo uma chave para ter livre acesso ao laboratório. Seria no mínimo um acolhimento à professora, além de um estímulo ao uso desse espaço.

Mas não. Mesmo diante da minha proposta de coletivizar um suposto problema e debater em grupo uma possível solução, dialogicamente com professoras e coordenação, de como gerir os espaços da escola, dando ouvidos às nossas dificuldades pedagógicas de ter que enfrentar uma burocracia arcaica que inviabiliza o uso pleno dos espaços, nos dando condições  para um trabalho com dignidade e estímulo à metodologias que vão para além do século XIX, a resposta do diretor foi:

– Tudo bem, então vou usar dinheiro da APM para trocar a fechadura da porta do laboratório para assim poder organizar os espaços.

Essa é a lógica dos gestores das escolas do Estado. Carreiristas, na escalada para terem um cargo numa diretoria de ensino ou na praça da República, longe de uma sala de aula (será que gostavam de sala de aula?) com um salário um pouco maior que os nossos para poder pagar uma previdência privada, escondem seus projetos pessoais em decisões absolutistas e arbitrárias, mascarando a própria ascenção em vias burocráticas com aquilo que Freire chamaria de falsa generosidade. Como se fosse natural professoras aderirem a esse pacto de mediocridade para ser degraus de seus projetos pessoais, passando por uma escola verticalizada, centralizada e corporativista, e esquecessem a precarização do trabalho de professoras do estado e a crescente e diária violação da dignidade do trabalho docente, com salários miseráveis, salas superlotadas e adoecimento físico e mental generalizado. A quem não aceita a mediocridade e a obediência, a perseguição institucional, como a qual estou sendo colocado quando há a ameçada de usar dinheiro da APM para resolver um problema que não existe e sendo criminalizado.

A escola é um espaço essencialmente coletivo. Professoras têm necessidades pedagógicas que não necessariamente concorrem com as necessidades administrativas da escola. Contra o argumento de autoridade de “professoras reclamam da gestão porque nunca foram gestão”, uma boa conversa coletiva e aberta. Se nos ouvissem, nossas experiências mostrariam ideias potencializadoras de nosso crescimento. Dividir conhecimento constrói mais conhecimento. Pelo menos é a expectativa que aprendi a ter, principalmente na escola, espaço em que o obscurantismo deveria passar longe.

São elevadas demais minhas expectativas com essa escola? Ou serei eu um cachorro tentando matar outro a grito? Talvez esteja perto o dia em que não vou mais dar serviço naquele lugar.