Jaqueline

Estou na casa de meu pai, à uma viagem de distância da minha. Aqui, tanto ele quanto sua esposa insistem em me chamar pelo meu nome antigo.

Há quinze dias, eu havia feito ao casal uma visita com o único objetivo de comunicar minha mudança de nome como parte de minha transição de gênero. Desde então, é como se aquela visita nunca tivesse acontecido. Nunca se referiram a mim como Jaqueline. De tanto me chamarem pelo nome que não uso mais, tanto por telefone nesses últimos dias quanto hoje enquanto estou aqui, chego a ficar em dúvida se aquela visita ocorreu, se comuniquei minha transição e meu nome a meu pai e sua esposa ou se aquele evento, o mais esperado de minha vida, foi um sonho, uma memória inventada ou uma alucinação.

Percebo que me isolei hoje durante toda a tarde em um quarto com o celular até descarregar, como uma velha hermitona em um bunker, evitando interagir e ouvir meu nome antigo, fugindo do inevitável.

Passei minha vida escondida. Não vou mais fazer isso. Vou agir. Já é noite. Chamo ele e ela na sala.

– Gente, deixa eu perguntar uma coisa pra vocês. Vocês não conseguem me chamar por Jaqueline?

Silêncio de cinco segundos ou horas, não contei. A sala está a meia luz. Meu pai, inerte, mãos nos bolsos de seu roupão azul atoalhado, com olhar frio e pouco iluminado, quase sombrio, exala o medo do conflito. Ele me encara. Sua esposa, de avental, ouviu minha pergunta enquanto enxugava alguma louça na porta da cozinha. Ela, como parte de sua missão de vida de manter a harmonia ao seu redor, se corrige:

– Pensei nisso. Eu pensei nisso, mas para gente é difícil, né?

Meu pai volta a respirar e consegue falar.

– É, filho. São 40 anos te chamando assim.

– Entendo vocês. Sei que é difícil, mas usar meu nome antigo me desconforta.

– É verdade. Mas ele – ela aponta para meu pai com uma mão enquanto, com a outra, segura ao mesmo tempo uma vasilha e um pano de prato, e postula – vai continuar te chamando assim por mais algum tempo, tá?

É tanto IPO abrindo por aí que devem acreditar que minha vida também é negociável.

– O problema é que isso me desconforta, gente.

– Mas e ele? – ela aponta de novo para meu pai, de novo inerte. – Mas tudo bem, a gente vai tentar.

Eu queria matar meu nome antigo. Ela, o assunto.

Preciso escrever essa história. Venho para o quarto, agora não mais um bunker, mas uma janela aberta. A esposa, com fé na missão, liga a tevê, o rádio, o celular, qualquer coisa que rompa o silêncio que faz a família sentir a dor da mudança. Enquanto teclo, meu pai se aproxima, me dá tapas nas costas – seu carinho – em busca de alguém para compartilhar sua célebre frustração:

– Agora perdi minha última esperança de ter um neto.

A esposa ouve de longe, vem dar um retoque na ideia sem muito nexo de seu marido. Deixei estar. Amém – não é o que dizem?

O que soa como um final para algumas pessoas, para outras é o mais empolgante dos inícios.

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