Conversa entre máquinas

Lúcia me cumprimentou na academia.

Lúcia, essa pobre mulher, deixou escapar um pedaço da verdade em plena era da informação. Academia não é lugar de amor. Onde já se viu cumprimentar, em pleno treino, uma travesti que você não conhece e puxar assunto? Veio ainda sem celular ou fone de ouvido. Queria eu sentir falta de gente que não usa redes sociais e acaba se colocando em situações constrangedoras como essa. Quem não rola a barra, não deveria rolar na esteira.

A academia é um templo, o lugar privilegiado da dor, principalmente para quem não está na escola, no hospital, na prisão, no hospício, no trabalho ou com a família. Os aparelhos de musculação nos garantem a dor individualizada, ótimos para pessoas convictas como eu, que preferem a autoflagelação com máquinas a todas as outras maravilhosas experiências sensoriais que o progresso social tem sido capaz de nos oferecer. É um momento ímpar que não deveria ser interrompido por conversas e outras amenidades com ninguém. A senhora simpática em busca de fisioterapia, jovens abdicando de exercitar a mente para cuidar do corpo, o cosplay de Hércules e seus espelhos, a manequim da Lycra, intelectuais que cansaram do birô. Não importa. As únicas pessoas com quem deveríamos conversar no salão é a da recepção, que nos recebe com seus olá-tudo-bem em tetrapak, ou a que nos instrui como promover nossa autotortura nas pilhas de metal.

Não, não sou radical. Há de concordar: quem ama se cuida, e cuidar de si é garantir a ordem das coisas dentro de uma academia. É nesse museu dos sentimentos humanos mais primitivos, em que o homem pode se tornar ainda mais homem, que nossa cultura ancestral tem sido deixada em conserva. Por isso, temos o dever moral de impedir que a conversa de uma estranha durante um treino coloque em risco nossos rituais mais antigos.

Até me esforço em aceitar que alguém puxe um papo entre os aparelhos, desde que seja mais curto que conversa com motorista de ônibus. Já pedi para a gerência um “fale apenas o indispensável” pendurado na catraca; até agora, nada. Perceba, ali tem placa pra tudo. Economize água. Não use celular no treino. Mantenha seu pet amarrado. Estacione ali, aqui não. Aperte o botão de pânico. Ajuste o comportamento. Higienize a máquina após o uso. Racismo não. Verifique se o mesmo assombra o local. Só não tem o mais importante dos avisos. É óbvio que vai surgir uma desavisada para pôr em risco toda nossa herança pré-histórica do culto ao corpo.

Até então, os únicos contatos que tive com pessoas usuárias em academias foram visuais. Sempre em silêncio. Nunca me falaram nada, só me aplicam um olhar de estranhamento, com aquele cenho reprovador franzido. Principalmente quando estou no vestiário. Não há dúvida de que esse olhar é para me lembrar de que em academia não se conversa, muito menos onde mulheres se vestem. É como se as pessoas empaticamente se colocassem como vigilantes, cuidando para que as outras não se esqueçam nunca de que, por mais que a placa não esteja ali, é preciso agir com correção.

Só esqueceram de combinar com a Lúcia.

– Oi! Tudo bem com você?

Óbvio que não!, pensei comigo. Isso é uma academia! Se estava tudo bem, a partir daquele instante, em que duas desconhecidas começavam uma conversa em um lugar sagrado, o oceano Atlântico aumentava em mais um centímetro.

Tentei reconhecê-la. Se já fosse minha amiga, teríamos carta branca para a conversa. Infelizmente não era. O terror deve ter se estampado em meu rosto, porque ela foi logo se justificando:

– Meu nome é Lúcia. Sou lá da Giovanni, mas quando chego em casa a academia de lá fica tão lotada! Então tô tentando essa aqui da Leopoldina a essa hora, que é quando saio do trabalho.

Em resposta, sorri, saí da minha cadeira adutora, fui até sua abdutora e me apresentei, cumprimentando minha carismática vizinha. Foi minha autodefesa. Afinal, se ela foi tão longe naquela charla e mostrou não saber muito bem como as coisas funcionam ali, o que mais ela seria capaz de fazer?