Raio X

Com tosse e febre, fui ao pronto socorro em um sábado à noite. Tive esperança de o atendimento ser igual aos curtas da Pixar, rápido e com final feliz. Mas a espera estava lotada, para sorte de ninguém. 

Fui atendida depois de esperar por quase duas horas. Com suspeita de pneumonia, ofegante e já sentindo a dor da benzetacil que me esperava, fui para a radiografia. Depositei a guia na caixinha da fila, desejando que o técnico confundisse a ordem e me passasse na frente das duas pessoas na mesma sala. Eram uma criança de colo catarrenta e uma senhora gemendo de dor. Quando notei as duas em situação pior que a minha, me senti cruel. Pensei até em pegar água para as duas e aliviar minha culpa.

Nesse instante, um novinho saiu da sala de radiografia e folheou as guias. Tinha um jaleco impecavelmente branco e um sapato lustrado, elegante como um médico de uma clínica particular de estética. Quando me imaginei radiografada por aquele rapaz, a febre diminuiu em um grau, embora meu calor aumentasse.

Mas o mundo capotou assim que o jovem abaixou a cabeça para ver as guias das pacientes. Um frio correu minha espinha. Reconheci Jefferson, um ex-aluno, o último que eu esperava encontrar na porta da radiografia.

Jefferson era gamer profissional quando ainda estudava no ensino médio. Competindo e monetizando seu canal no Twitch, ganhava mais do que eu e as outras professoras. Seu celular era instrumento de trabalho, dentro ou fora da sala de aula. Não o largava nem no refeitório. Estava sempre de cabeça baixa, com os olhos voltados ao aparelho. Na época, eu imaginava o rapaz andando pela rua com o smartphone na mão trombando em árvores e postes ou tropicando em buracos nas calçadas. Nunca o vi ferido, o que me sugeria que era minimamente capaz de sobreviver, embora eu tivesse dúvidas sobre sua segurança. Havia professoras que o odiavam, enquanto eu tentava fazê-lo ter o mínimo de responsabilidade, pelo menos, com a própria vida.

Foi o que tentei fazer em uma aula muito séria de Física moderna. Percebendo como o rapaz me ignorava como sempre e sem o menor constrangimento, tentei mais uma vez envolvê-lo no assunto da aula.

– Jefferson, já ouviu falar sobre o acidente com césio-137 em Goiânia?

– Já. 

Ele apertava a tela com polegares ferozes.

– E aí? Divide com a sala o que você sabe sobre isso.

– Foi que nem Chernobyl.

Até seus colegas de fundão tentaram segurar os risos.

– E uma peça de máquina de raio X num ferro velho é igual a um reator nuclear exposto após uma explosão?

– É – e o celular seguia apanhando de suas mãos. 

Só faltava eu implorar pela atenção do rapaz.

– Queria que você percebesse que essa aula aqui pode ser útil para sua segurança e das pessoas com quem você for conviver.

Ele mal respirava. 

– Pois é.

“E se esse menino um dia tiver que trabalhar com radiação?”. Como só fui capaz de imaginá-lo trabalhando com videogames e afins, essa minha preocupação desapareceu rapidamente. Hoje não tenho dúvida de que nesse instante um anjo safado passou dizendo amém. Até então eu não acreditava nessas coisas de querubins, céu, apocalipse e inferno, do qual eu estava na ante sala. Nunca apostaria um tostão em vê-lo com diploma ou trabalhando em algo a ver com Física, muito menos operando uma máquina de raio X. Mas ali no pronto socorro, para prolongar minha dor e meu sofrimento com uma máquina radiativa potencialmente mal calibrada, estava Jefferson: jovem, elegante, técnico, sem celular na mão, procurando a próxima paciente para bombardear com seu terrível feixe de radiação.

Quando ouvi meu nome ser chamado pela segunda vez, eu fugia pelo corredor, com passos rápidos, ofegante, com febre e sem olhar para trás. Torci pelas vidas da criança e da senhora. Eu preferia cuidar sozinha da minha pneumonia com florais ou chá de alho a entrar na radiografia com o ex-gamer. 

Já no caminho para outro pronto socorro, pensei ter exagerado ao fugir. O atendimento de Jefferson poderia ter sido indolor, cuidadoso e sem risco de câncer. Me arrependi por não ter ficado, pois teria que recomeçar a saga do atendimento médico em outro pronto socorro. Mas o arrependimento passou quando percebi que Jefferson havia confundido a ordem das guias – e que não vivo em um curta da Pixar.

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