Quando deixamos de entender as pessoas

Resenha do livro “Quando deixamos de entender o mundo”, de Benjamín Labatut, Ed. Todavia

Um professor que falava sobre anãs brancas, gigantes vermelhas e buracos negros me acendeu o desejo por estudar as estrelas. Outro professor me sugeriu como caminho a graduação em Física, que me garantiria mas opções no mercado de trabalho que a Astronomia, e me daria linguagem para estudar astrofísica estelar na pós-graduação. À época, também me interessava descobrir se a natureza, pela Física e pela Cosmologia, me daria alguma pista da existência daquele Deus em que eu já não acreditava, ou de uma unidade fundamental, a grande Verdade. Sentia que, havendo uma razão ou uma ordem estruturante das leis universais, eu a encontraria nas entrelinhas daquilo que me parecia uma linguagem que deveria preceder a existência do Cosmos.

No segundo mês da minha graduação em Física, mais pelas discussões com colegas de outros cursos do que pelos debates dentro da carreira que escolhi, entendi ser impossível acessar uma realidade objetiva por qualquer tipo de linguagem, inclusive a que eu estudava. Comecei inclusive a discriminar uma linha filosófica seguida por muitos professores do meu curso, que defendia a Matemática como linguagem universal. Não foram poucas as vezes em que ouvi sobre a expectativa de, havendo vida inteligente além da terrestre, a comunicação entre nós e esses seres seria inevitavelmente pela Matemática — ideia presente em “Contato”, ficção de Carl Sagan, e em outras obras de divulgação científica.

Esse tipo de busca pessoal por uma linguagem universal, que por muito tempo compartilhei com outras pessoas envolvidas com Ciências da Natureza, é muito comum entre quem têm alguma afinidade com o pensamento científico. Ao ler “Quando deixamos de entender o mundo”, de Benjamín Labatut, me reencontrei com essas pessoas. Foi um encontro muito feliz, por mais que a narrativa traga em alguns trechos as angústias que se desdobram dessa busca. Não apenas um reencontro, mas uma aproximação inesperada com personalidades que em meu imaginário eram ostentadas como gênios com os quais eu nunca me igualaria. A surpresa foi enfim poder me colocar no lugar deles, não pela afinidade com seu trabalho, muito menos por sua incrível capacidade de abstração, mas pela humanidade inerente à sua produção intelectual.

“Quando deixamos de entender o mundo” é uma obra que mistura elementos reais da vida de cientistas e matemáticos com nomes consagrados no meio científico. Ao apresentar a relação de personalidades como Frtiz Haber, Karl Schwarzchild, Shinichi Mochizuki, Alexander Grothendieck, Louis De Broglie, Werner Heisenberg, Niels Bohr e Erwin Schroedinger com seus objetos de pesquisa, o autor consegue oferecer uma ideia de como o lado humano não se separa da genialidade de todos eles.
Labatut explorou com brilhantismo a liberdade de mesclar não ficção com ficção, o que torna difícil atribuir um gênero à sua obra. Considerando a formação latinoamericana de Labatut, que vive em Santiago do Chile desde seus quatorze anos, é inevitável traçarmos um paralelo entre a mistura entre esses dois tipos de narrativas que caracteriza seu livro e a obra de Jorge Luis Borges. Como exemplo, temos a epígrafe do capítulo que tem o mesmo título do livro; o autor usa um trecho de uma carta de Heisenberg a Wolfgang Pauli – elemento não-ficcional – e depois narra o próprio Heisenberg em uma taverna tomando um líquido alucinógeno, algo como uma beberagem com efeitos como o da ayahuasca. A bebida provoca a visão de luzes hipnóticas e inexplicáveis, de uma multidão e de uma criança morta em um bosque; não há evidências de que o cientista tenha passado por essa experiência.

Entendo que não vale a pena colocar em questão se o uso de elementos ficcionais misturados com não ficcionais na mesma narrativa dá mais ou menos valor à obra, ou se é intenção de Labatut enganar quem lê. Vale, sim, explorar o que tal recurso nos oferece. Se há ficção, seu valor passa a ser justamente o de nos conectar com o que há de mais humano em suas personagens e o que nos afeta como pessoas e agentes sociais: sendo a narrativa verossímil, teríamos feito como elas na realidade apresentada nas páginas desse livro? Do ponto de vista de Luiz Antônio de Assis Brasil, ser ficcionista é exercer nossa humanidade. Nesse sentido, Benjamín Labatut, exercendo a sua, conferiu humanidade a grandes cientistas que costumam ser encarados como representantes de uma esterilidade que o senso comum atribui às Ciências da Natureza e à Matemática, que até pouco tempo eram referidas como Exatas. Ao longo do livro, fala-se como Albert Einstein, a quem o senso comum infelizmente atribui uma intelectualidade que o coloca acima de todas as outras pessoas, ou até próxima de uma pretensa perfeição, errou ao menos duas vezes conforme documentam seus artigos – ao tentar “exorcizar” a singularidade de Schwarzchild e ao renegar os modelos quânticos para representação do mundo subatômico. Acredito também que o livro de Labatut poderia ter ido ainda mais longe com a humanização dos agentes da Ciência se tivesse colocado ao menos uma cientista entre os homens protagonistas dos cinco capítulos.

Quando se desenvolve a relação entre Schroedinger e srta. Herwig, filha do dono da clínica a que recorre para tratar sua tuberculose, o físico fantasia e se masturba imaginando a adolescente. Vejo nesse exemplo uma cena que dificilmente seria imaginada por qualquer pessoa que passou anos estudando a função de onda, alicerce da mecânica quântica, aplicada em situações mais diversas do mundo. O que se estuda nos cursos de Física são os modelos explicativos como possíveis soluções para problemas concretos ou abstratos, e não a subjetividade das pessoas que as produzem. Conflitos e tramas como as de Bohr, Heisenberg e Schroedinger surgem durante as aulas tradicionais do curso como alegorias, às vezes fofocas ilustrativas, para dar algum alívio diante do estresse causado pelo estudo muitas vezes bitolado das equações. Um grande mérito de “Quando deixamos…” é colocar os gênios conosco na mesma fila da psicanálise, escancarando suas imperfeições, neuroses e em muitos casos a mais profunda incapacidade de lidar com seus próprios problemas pessoais.

A narrativa de Labatut atribui forte subjetividade ao modo como se faz Física, Química e Matemática. Sua voz narrativa, uma terceira pessoa onisciente que só se manifesta no último capítulo, é uma escolha que garante a quem lê um exercício extenuante de alteridade, fazendo com que nos coloquemos no lugar de mentes com imensa capacidade de abstração e que buscam experiências transcendentais em drogas, paixões, sexo, esportes, coletividades alternativas e imersões em máximo isolamento, a fim de acharem soluções para os problemas que os inquietam. Em “O coração do coração”, capítulo sobre Mochizuki e Grothendieck, narra a busca por caminhos revolucionários que poderiam mudar a forma de se fazer Matemática caso pudessem ser comunicados a outras pessoas. No entanto, sua frustração ao comunicar os resultados de sua pesquisa, assim como a própria dificuldade de comunicação, sugerem um desequilíbrio do ponto de vista psíquico, que na narrativa manifestam os diferentes modos que temos para a busca por soluções de nossas inquietações, cada pessoa partindo de sua relação com a própria realidade. Acredito que julgar as escolhas de Mochizuki e Grothendieck implicaria necessariamente em perpetuar algum tipo de preconceito, e Labatut consegue não fazê-lo em sua narrativa, que ganha nesse capítulo um caráter em alguns trechos antropológico, de tão grande que parece ser o esforço para evitar dar rótulos aos matemáticos.

Se constatarmos a partir da leitura de “Quando deixamos…” que sobra pouco de exato nas Ciências da Natureza e na Matemática, é possível mirar na subjetividade das ciências para criticá-la em pelo menos dois de seus aspectos.

Um deles diz respeito aos efeitos nos próprios cientistas de uma mente humana capaz de desenvolver raras abstrações. Em “A singularidade de Schwarzschild”, após surpreender Albert Einstein e outros cientistas com uma solução para corpos com massas extremas nas equações da relatividade geral, o alemão Karl Schwarzschild, com a saúde abalada por doenças decorrentes de sua participação na Primeira Grande Guerra e aflito por não se satisfazer com o buraco negro como tal solução, se questionava, manifestando certa loucura em seus últimos dias: “se esse tipo de monstros era um estado possível para a matéria, teria um correlato na mente humana?” Efeitos da busca por tantas relações entre conceitos de áreas aparentemente tão distantes poderiam ter levado Schwarzschild à loucura, assim como aconteceu com Mochizuki e Grothendieck?

O segundo aspecto diz respeito aos efeitos sociais da Ciência ou sua interferência direta na história da humanidade. Em “Azul da Prússia”, capítulo em que há uma passagem que conta como Fritz Haber revolucionou o modo de produção de fertilizantes, é apresentado como uma pessoa que ofereceu condições para se criar vida é a mesma que inventou um recurso que provocou a morte de tantos seres humanos, como o Zyklon B usado por nazistas em câmaras de gás.

São esses dois aspectos que parecem ser o eixo escolhido pelo autor em seus cinco capítulos. Por que homens tão geniais como os protagonistas de seu livro, apesar de tamanho domínio da linguagem à qual dedicaram suas próprias vidas, se perderam em sua própria humanidade, colocando em risco eles mesmos, as pessoas ao redor e até mesmo a própria sociedade europeia? Uma ideia que podemos ter ao lermos o livro de Labatut é que pessoas tidas como geniais, a partir do momento em que se envolvem visceralmente com sua pesquisa, perdem o controle de si e de sua produção. Essa reflexão é melhor caracterizada no último capítulo, em que o autor assume a voz narrativa e relata sua experiência com uma pessoa a quem ele se refere como jardineiro noturno, em um vilarejo no Chile. Ao final, há uma sugestão de que se corre o risco de estragar aquilo que tanto se quer conhecer. Para quem essa mensagem não surge ao longo dos quatro capítulos anteriores, Labatut dá a oportunidade de acessá-la em seu último parágrafo. Já para quem acessa o título original, que poderia ser livremente traduzido como “A terrível vegetação”, a ideia de matar um limoeiro para conhecê-lo melhor fica ainda mais forte enquanto metáfora do potencial problema da busca pelo conhecimento pelo caminho da Ciência.

Se nos enveredarmos por mais uma possível dimensão do livro, poderíamos ainda dizer que, na mescla entre ficção e não ficção guiada por uma narrativa que começa em terceira e termina em primeira pessoa, deixamos de entender o mundo quando abrimos mão de uma predisposição para entender as pessoas, como Labatut se predispõe a fazer com o jardineiro noturno, para irmos em busca de uma mensagem escondida na natureza que, quem sabe, venha a ser revelada por uma linguagem que talvez nunca sejamos capazes de saber se de fato existe.