USP e feudalização

O brasão da PM

Todas as ações tomadas pela USP a levam ao isolamento. Busca-se, a cada reunião de departamento, a cada canetada de diretores e reitor, transformar a Universidade em um Universo-Ilha. Essa prática não é exclusiva da atual gestão, nem da última nem mesmo de qualquer outra. A elitização e a decorrente exclusão popular está no DNA da USP, desde sua idealização pela elite paulistana no começo do século XX, encabeçada por Júlio de Mesquita (que aliás teve seu nome emprestado à UNESP), até os dias de hoje, levada a cabo por todos que herdaram o discurso elitista e dirigem a instituição.

O discurso pelo autoisolamento uspiano, semelhante ao dos feudos que pautaram parte da história europeia, hoje ocupa o lugar que no passado teve o vestibular, o erguer de muros, o controle de entrada nos finais de semana: a segurança é o valor do momento. Como se a solução para os problemas provenientes da postura sectária, que extirpa do interior dos muros a comunidade dos arredores e exclui das discussões quem poderia ajudar a resolver os problemas de forma conjunta, fosse levantar ainda mais a muralha, colocar mais armas apontadas para o lado de fora, se eximir da culpa de não refletir acerca de uma estrutura social em que se estimula a agressividade e se cobra docilidade, ignorar que o todo se faz de partes e que as partes devem pensar juntas para formarem um todo.

A exigência da presença da PM dentro do campus-ilha é um totem à feudalização da USP. Essa exigência é revestida de uma retórica vergonhosamente hipócrita, que argumenta que a USP deve ter as mesmas leis que o resto da sociedade. Ou seja, à sociedade cabe esperar o desejo da USP para estreitarem a relação, e a melhor oportunidade para tal surge no abrir das portas para a PM proteger a integridade do patrimônio do senhorio. A realidade é que, por mais que repitam que as leis devam ser as mesmas dentro e fora do campus, a preocupação real não é satisfazer qualquer necessidade popular. A PM não é requisitada para proteger a “população” dentro da USP, pois essa “população” não faz parte dela, foi excluída da realidade uspiana há tempos – se é que um dia fez parte.

Para colorir ainda mais essa atmosfera circense – hilária por ser tão hipócrita – cria-se um clima de polarização em torno do episódio em que estudantes da FFLCH que portavam ou fumavam maconha foram abordados por policiais, jogando para baixo do tapete o verdadeiro problema, que é seu isolamento da sociedade, a quem deveria servir. E a postura sectária uspiana se traveste da falsa polêmica que opõe os que são a favor aos contra o convênio entre a Corporação e a Universidade. Vejam a ópera-bufa: é feita a ligação entre o caso dos jovens que usam drogas e a presença de traficantes armados no campus e, para completar, misturam tudo isso no mesmo saco com a morte do estudante em maio de 2011 no estacionamento da FEA. Traficantes armados que certamente são mais ausentes que o reitor no campus; um aluno morto injustamente e que, acredita-se, teria sobrevivido se a PM estivesse no campus (mas ela não estava lá?); e usuários de drogas que são comparados a assassinos, passando por um processo de criminalização que vem sendo cada vez mais questionado, principalmente depois de toda a acumulação em torno desse problema – veja a visibilidade da Marcha da Maconha, de inúmeros depoimentos de especialistas e da distribuição de documentários que apontam para a insustentabilidade da atual legislação referente ao consumo de drogas. Aliás, essa legislação faz hoje do Brasil um dos países mais retrógrados nessa questão, principalmente quando comparado aos que já a resolveram de forma muito mais civilizada do que apontar armas para consumidores de entorpecentes arbitrariamente encarados como ilícitos. Nessa postura, refratária à complexidade de um problema mais amplo, ignora-se o que já se construiu de conhecimento capaz de por um fim a esse conflito, aproveitando-se uma situação sensacionalizada, jogando todos os gatos no mesmo balaio para justificar a presença da PM no campus para a efetiva proteção daqueles que merecem sua proteção.

Todo esse engodo não seria menos fascista se não apelassem ao argumento de que “sou a favor da PM no campus e sou maioria”. Maioria em quê? Maioria que não quer debater o problema a fundo? Parece que todo o rigor científico usado para vencer a concorrência por verbas contra os grupos de pesquisa adversários é posto no lixo quando se precisa problematizar a sociedade e a política na qual a USP se insere. Não deveria haver um problema na falta de debate ou de rigor científico para algumas discussões, ou isso é dispensável quando a maioria já está estabelecida em torno do que se quer defender? E as minorias? Que sejam ignoradas, afinal por que se importar com elas se são meras minorias? Indígenas, comunidade LGBT, negros, deficientes físicos, idosos, por favor, cortem seus pulsos e acelerem nosso progresso, pois a maioria sempre terá a razão.

À USP não interessa resolver o problema real e buscar soluções voltadas a curar uma sociedade estruturalmente doente. Clamar pela PM no campus ou fora dele é desviar o foco de uma solução que, talvez por ser tão complexa, não é tão atraente. E esse desvio a leva cada vez mais à sua feudalização. Ao reivindicar a PM no campus para proteção de seu patrimônio, a comunidade uspiana reforça seu isolamento, com toda a configuração que cabe a um feudo: o corpo clerical/científico, esclarecido e responsável pelas verdades dadas em pílulas ao povo; o rei/reitor, que decide com apoio da nobreza os rumos do reino, sem a necessidade de consultar qualquer parte interessada – a não ser quando julga pertinente; os vassalos/terceirizados, aceitos no reino para suprir as necessidades dos estamentos superiores; e agora mais que nunca o exército/PM, para trazer segurança à fortaleza e resistir às intempéries externas, que ameaçam o conteúdo patrimonial guardados pelas muralhas sagradas da Universidade.

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Atualizando em 07/11/2011:

Não deixei absolutamente claro que sou absolutamente contra a PM no mundo (não ao menos neste post, talvez em outros). Minha intenção era me concentrar em um problema que ao meu ver é maior, embora não apague do horizonte a questão do uso da força policial no campus. Mas acabei de ler um texto que expressa muito disso tudo que omiti acima. É de uma blogueira uspiana (portanto tem propriedade para tratar do assunto) cujos textos gosto muito e que um dia terei a honra de conhecer pessoalmente. Saboreiem!